por Rayan Vasconcelos Bezerra*

Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar. Essas são palavras do discurso proferido por Ulysses Guimarães, quando de sua posse, em dois de fevereiro de 1987, como Presidente da Assembleia Nacional Constituinte (1987/88). Transportando para o ano de 2014, fica a lição: se a Nação vai mudar, com a tão sonhada reforma política, que o faça de forma correta.

Voltaram à tona manifestações populares, organizadas principalmente por movimentos sociais, que exigem a realização de plebiscito, para que a população decida sobre a convocação – ou não – de uma Assembleia Constituinte “exclusiva” para a elaboração da reforma política, um dos cinco pactos prometidos pela Presidente Dilma Rousseff depois das manifestações de junho de 2013, que envolve temas controversos, como financiamento privado de campanha, sistema eleitoral (voto proporcional ou distrital), reeleição para cargos do Executivo e cláusula de barreira.

Duas palavras definem tal ideia: aberração jurídica. Explico os por quês.

Antes, contudo, cumpre fazer breves comentários, para um maior esclarecimento. Inicialmente, a distinção entre plebiscito e referendo, previstos, respectivamente, nos incisos I e II do artigo 14 da Carta Magna e regulamentados na Lei nº 9.709/98. A principal diferença reside no momento em que é feita a consulta. No plebiscito, antes da elaboração do ato legislativo ou administrativo, há a consulta ao povo sobre o tema em questão, cabendo-lhe aprovar ou denegar as propostas. Entende-se que a decisão positiva da população vincula os Governantes, não podendo estes decidirem em sentido contrário, em respeito ao princípio da soberania popular. Já o referendo acontece depois da aprovação do ato legislativo ou administrativo pelo órgão competente, restando ao povo a função de ratificar ou rejeitar o que lhe foi apresentado. Em resumo: no referendo, o povo endossa um cheque do Parlamento. No plebiscito, o povo dá ao Parlamento um cheque em branco, nas lições do Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto.

Segundo, quem convoca plebiscito ou autoriza referendo é o Congresso Nacional, dada sua atribuição constitucional prevista no artigo 49, XV, da CB/88; e não o Presidente da República, cujas atribuições estão disciplinadas no artigo 84, como alguns podem vir a pensar.

Em terceiro lugar, existe uma diferença entre Constituinte Exclusiva e Constituinte Monotemática, ao meu ver. A primeira faz referência à criação de uma Assembleia Nacional Constituinte com a função exclusiva de discutir e elaborar uma nova Constituição, composta por representantes eleitos, exclusivamente, para esse fim. Diferente, portanto, do que ocorreu com a Constituição de 1988, elaborada pelo Congresso Nacional, que conciliou – confusamente – suas atribuições ordinárias com a atribuição extraordinária de criar a Constituição Cidadã. É dizer, citando Raymundo Faoro (ex-Presidente do Conselho Federal da OAB), há Constituinte – exclusiva – ou Congresso com poderes constituintes. Agora, a Constituinte Monotemática, como o próprio nome já diz, é alusiva à criação de uma Assembleia Constituinte para debater apenas um ÚNICO tema, o que é totalmente inconcebível perante o Direito Constitucional.

Entramos, pois, no ponto nevrálgico do tema.

Em verdade, é louvável que a sociedade brasileira esteja sendo tomada pelo sentimento constitucional, demonstrando uma mínima preocupação cívico-política com a Lei Fundamental. No entanto, cabe aos operadores do Direito demonstrar o correto caminho das pedras. A Assembleia Nacional Constituinte é manifestação do poder constituinte originário, expressão criada há muito para designar o poder de criar uma Constituição e de fundar ou refundar o Estado e a ordem jurídica, cujo titular é o povo. A convocação desse órgão constituinte se dá em momentos – chamados de hiato constitucional –  de verdadeira ruptura entre o conteúdo da Constituição política e a realidade social ou sociedade, o que não é o caso da sociedade brasileira.

Muito embora o atual sistema político não represente, efetivamente, os anseios da população, por se tratar de apenas uma parcial incongruência político-social do texto constitucional – não em sua totalidade, como ocorreu no fim do regime de exceção – não há se falar em momento constitucional ou recomeço (new beginning), apto a ensejar a convocação de uma Constituinte, cuja atribuição primordial é a elaboração de uma nova Constituição, e não a reforma de parte dela. Para isso que existe o poder constituinte reformador, externado por Emendas à Constituição.

Qual seria a implicação prática disso? A Constituinte possui poderes autônomos, incondicionados e ilimitados, do ponto de vista jurídico, podendo dispor sobre qualquer assunto constitucional, sem encontrar obstáculos jurídicos pela frente. Em contrapartida, as emendas constitucionais devem respeito às limitações explícitas (art. 60, CF/88) e implícitas decorrentes da obra do Constituinte de 88, representando a forma mais autêntica de implantar a reforma política. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma, reconheceu Ulysses Guimarães, em seu célebre discurso de 5 de outubro de 1988.

Agora, se existem entraves políticos no Congresso Nacional que obstacularizam a proposta de Emenda, aí são outros quinhentos…

(*) Rayan Vasconcelos Bezerra é advogado e membro da Comissão de Estudos Constitucionais OAB-CE.

A opinião expressa no artigo é de responsabilidade exclusiva do autor e não representa a posição oficial da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Ceará (OAB-CE).