Antonio Oneildo Ferreira

Presume-se inocente o indivíduo que, mesmo acusado via ação penal, não tenha sido condenado conforme as regras do devido processo legal de um determinado sistema jurídico. A regra da presunção de inocência é da tradição do constitucionalismo que fundou os direitos fundamentais, vital, tanto quanto o princípio do devido processo legal, para o coração dos ordenamentos penais dos Estados democráticos de direito. Respeitando essa tradição garantista, e avançando mais ainda, a Constituição da República brasileira taxativamente declarou que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII). A um só tempo em que se mostrou deferente ao Direito Penal internacional,1 ao trazer para seu âmago a presunção de inocência, inovou ao condicionar o início da execução da pena ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória – conceito jurídico que, em nossa tradição jurisprudencial e doutrinária, nunca significou algo diferente da sentença irrecorrível, para a qual se esgotaram absolutamente todas as vias recursais, em todas as instâncias, incluindo os tribunais superiores.

Causa perplexidade o afã do Supremo Tribunal Federal, em aparente adesão a segmentos da sociedade civil e da mídia sedentos pelo punitivismo e pelo recrudescimento do Estado Policial, de mudar seu próprio entendimento jurisprudencial, firmado a partir de 2009 em reverência às inovações constitucionais de 1988, de que a possibilidade de interposição de recursos especiais e extraordinários obstaculiza o cumprimento da sentença. Pois estamos diante de regra de literalidade explícita, cristalina, inequívoca e unívoca, infensa a qualquer outra interpretação, e uma hermenêutica coerente e responsável deve tomar a leitura gramatical do texto como a mais peremptória evidência interpretativa. Afinal, a função jurisdicional num Estado constitucional regido pela separação de poderes limita-se a aplicar o direito vigente – jamais passa por criar novo direito, que é uma prerrogativa do Poder Legislativo –,2 e não se tratou de hipótese em que esse direito fosse ambíguo ou incerto a ponto de permitir ressignificações ou sopesamentos com supostos princípios concorrentes. A regra da presunção de inocência é clara, assim como são claras suas exceções.3

Por que, então, semelhante celeuma floresceu entre os juristas? A injustificada controvérsia entre permitir ou não a antecipação do cumprimento da pena, logo após decisão de segunda instância, tem dividido a comunidade jurídica. Mesmo doutrinadores de escol têm esposado teses politicamente apreciadas por uma população embevecida pelo ânimo de punir, mas juridicamente insustentáveis. Não à toa, o Supremo, nas ocasiões em que deliberou decisivamente acerca da matéria, mostrou-se acirradamente dividido.4 É um escândalo jurídico que as instituições contramajoritárias, arquitetadas justamente para interceder em favor dos direitos fundamentais individuais, estejam sucumbindo às avassaladoras paixões das maiorias – sentimento que deveria ser reservado ao legítimo espaço da política.

Assumindo essa mesma perspectiva, a advocacia, ciente de sua natureza inerentemente contramajoritária, deve colocar-se em favor da norma constitucional da presunção de inocência. Não há outra postura compatível com a advocacia senão a integral defesa da não antecipação do cumprimento da pena até o esgotamento de todas as vias recursais, conforme dita, de maneira imperativa, nossa Carta Magna, e faz questão de reiterar o Código de Processo Penal.5 Tão inconteste é esse compromisso, que a Ordem dos Advogados do Brasil – entidade representativa da classe que é indispensável à administração da justiça, na dicção do art. 133 da Constituição –, atenta a seu múnus público, propôs ação declaratória de constitucionalidade (ADC 44 ) com o intuito de pôr termo à teratológica polêmica jurisprudencial.6

Defendo a tese de que sustentar uma leitura não literal e juridicamente assistemática – portanto, inconstitucional – da norma da presunção de inocência prova-se incongruente com a natureza contramajoritária da advocacia.7 Acredito que, para além da insustentabilidade de tal leitura, há entre ela e a advocacia uma irremediável incompatibilidade ética. Portanto, na hipótese em que um membro da classe insista em propagar publicamente sua concordância com esse absurdo hermenêutico, deveria haver comunicação oficial e solene de tal circunstância a seu cliente, a fim de evitar que essa situação venha a embaraçar a defesa do constituinte. Ressaem ao menos dois argumentos para tanto: a) como já mencionado, a advocacia possui indisponível natureza contramajoritária, portanto vocação para a defesa intransigente dos preceitos constitucionais e dos direitos fundamentais; e b) há um dever especial de fidúcia entre advocacia e cliente, de modo que uma informação dessa relevância para a defesa do constituinte não possa ser omitida de relação marcada por tamanha requisição de lealdade e transparência. Vejamos.

II

a) A interpretação inconstitucional da presunção de inocência instaura uma espécie de excepcionalidade jurídica no Direito Penal pátrio, que joga a Constituição contra si mesma. À advocacia impende o papel de mediar o conflito entre as medidas de exceção e a normalidade constitucional, sempre a favor dos direitos dos cidadãos, isto é, sempre em sentido contramajoritário.8 Deve posicionar-se contra a criminologia midiática, contra as pressões populares e da opinião pública pela criminalização desenfreada e não criteriosa, contra a cruzada punitivista de alguns setores do Ministério Público, da Polícia e do Judiciário, contra o “panis et circenses judicial“, pois seu compromisso inalienável é com as disposições constitucionais do Estado democrático de direito. A advocacia não está do lado das maiorias, mas do lado dos princípios da justiça e do Direito.

A advocacia é a instrumentalização da defesa das regras que compõem o jogo democrático. Só é possível que ela atue em um horizonte de regras e parâmetros, quer dizer, em um ambiente de normalidade constitucional. A exceção é extremamente maléfica para o contrato social,9 para a estabilidade institucional, para a cooperação coletiva e para a solidariedade republicana. A extrapolação do estado (e do Estado) constitucional remete a uma situação de permanente insegurança e vulnerabilidade, a um verdadeiro estado pré-social, pré-contratual, pré-político, a uma ditadura das idiossincrasias e do subjetivismo, em que o livre-arbítrio e a imposição violenta das próprias razões é a única lei possível, ao estado hobbesiano da guerra de todos contra todos. A Constituição é nossa referência originária de civilidade, ao promover uma blindagem aos anseios predatórios da maioria em favor da garantia de patamares mínimos de respeito à dignidade humana. Não por acaso, a advocacia é a primeira a denunciar as tentativas de corrosão da ordem constitucional do Estado democrático de direito, em consonância com sua natureza contramajoritária.10

b) O dever de fidúcia entre advocacia e constituinte emana das indeclináveis normas éticas que regem a profissão. Normas que possuem, inclusive, amparo legal, na forma do art. 33 da lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB): “O advogado obriga-se a cumprir rigorosamente os deveres consignados no Código de Ética e Disciplina. Parágrafo único. O Código de Ética e Disciplina regula os deveres do advogado para com a comunidade, o cliente, o outro profissional (…)” (grifo nosso). Entre os dispositivos do CED, o dever geral de fidúcia é expresso no art. 2º, II: cabe à advocacia “atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé“. De forma complementar, o art. 8º diz respeito a um claro dever de transparência e informação: “O advogado deve informar o cliente, de forma clara e inequívoca, quanto a eventuais riscos da sua pretensão, e das consequências que poderão advir da demanda” (grifo nosso).

Fidúcia, segundo o vernáculo, é sinônimo e variante de confiança.11 Expressa um pressuposto muito especial para o relacionamento entre a advocacia e sua clientela, em vista da segurança e da lealdade requeridas em um processo penal. É essencial que clientes possam confiar na advocacia, pois lhe entregam nada menos que a defesa de sua liberdade, de sua reputação, de sua honra.

Em uma época em que a intimidade e a opinião são expostas a público em larga escala, principalmente devido ao alcance da internet e das redes sociais, é preciso que advogadas e advogados cuidem de sua honra objetiva. Dita o art. 31 do Estatuto que o membro da profissão “deve proceder de forma que o torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia” (grifos nossos). Ora, profissionais que manifestam apoio deliberado, público e notório à relativização da presunção de inocência descumprem, a meu ver, a missão constitucional da advocacia, na medida em que agem para desmantelar o próprio núcleo jusfundamental da Constituição. Podem até mesmo prejudicar a defesa de seus clientes, ao ter suas alegações públicas usadas como contra-argumento em desfavor destes, por parte da acusação no processo judicial – e esta eventualidade não pode ser de maneira alguma subestimada.

É importante salientar que advogadas e advogados são cidadãos e têm sua liberdade de expressão e opinião protegida também pela Constituição. Isso não se confunde, todavia, com a postura ética que se exige de um membro da classe. Cada corporação exige comportamentos típicos para que alguém dela participe, podendo-se falar, inclusive, em um “código de ética” em sentido amplo.

III

Configura direito fundamental de qualquer cidadão manter e expressar seus pensamentos, ressalvados os limites do permitido pelo Direito. O mesmo se aplica, naturalmente, à advocacia. À primeira vista, pode parecer paradoxal que um membro da classe seja constrangido a não manifestar sua opinião sobre determinada controvérsia. É igualmente paradoxal, contudo, que agentes comprometidos com a defesa contramajoritária dos fundamentos do Estado democrático de direito e da Constituição trabalhem a pretexto de destruir o conteúdo humanista do ordenamento constitucional, por meio do patrocínio de teses juridicamente infundadas (ainda que sufragadas pela Suprema Corte do país), que possam, no limite, colocar em xeque os sagrados interesses de seus clientes em juízo.

Evitar esses dois cenários é primordial, e parece-me que uma solução intermediária a ser oferecida é tornar os clientes conscientes das posições que sua advogada ou seu advogado defende publicamente – posições que poderão ser futuramente evocadas, em âmbito judicial, pela acusação, levando a defesa a um caso de verdadeira aporia argumentativa. Proponho, portanto, a recomendação ética de que advogadas e advogados que manifestam público e explícito apoio à relativização da presunção devam informar, formalmente, aos clientes sua opinião sobre esse questionável entendimento, sob pena de configuração de patrocínio infiel. Dessa forma, está assegurado ao cliente o conhecimento de circunstância que possa vir a prejudicá-lo no processo, cabendo-lhe a discricionariedade de mensurar o quanto isso possa ou não ser desvantajoso para si. É correto que a decisão final caiba ao cliente, que é soberano; mas, para isso, é preciso que ele esteja plenamente informado desse “detalhe” nada insignificante.

Esse gesto aparentemente singelo parece-me um ato essencial para fortalecer a advocacia no tocante a sua credibilidade social, com reflexos diretos em seus níveis de transparência, honestidade e lealdade, que marcam o modo como esse nobilitante ofício se relaciona com a sociedade e, em particular, com aqueles que nele confiam seu patrimônio jurídico – e seu bem da vida mais caro: a liberdade. Tal postura ética apresenta-se, portanto, como um impulso da advocacia no sentido de fortalecer as instituições do Estado democrático de direito, tal como é de sua natureza fazê-lo.

Antonio Oneildo Ferreira é advogado. Diretor-tesoureiro do Conselho Federal da OAB.

Fonte: Migalhas