O atual governo, que nunca foi um modelo de transparência e amor às regras do jogo democrático, volta a aprontar mais uma das suas. É que o Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos resolveu, num rasgo de ineditismo, excluir de seu relatório anual – Disque 100 os números referentes à violência policial no ano de 2019, isso num momento em que todos os estudos sérios sobre o tema (caso dos dados colhidos e divulgados pelo Monitor da Violência e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública) apontam no sentido de um incremento vertiginoso da violência e letalidade policiais em todo o País.

Para que fiquemos em apenas um só exemplo, talvez o mais eloquente, mas certamente não o único, segundo a Rede de Observatórios da Segurança Pública do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, deu-se no estado do Rio de Janeiro um aumento da ordem de alarmantes noventa e dois por cento no número de mortes decorrentes de intervenção policial. Nada menos do que uma a cada três mortes foram decorrentes de intervenção policial. Um escândalo.

Ao tentar varrer os números da vergonha para debaixo do tapete, o governo incorre em uma sucessão de erros que só a má fé explica. Atenta contra o princípio da publicidade, consagrado no artigo 37 da Constituição Federal; trai as regras da boa governança e impede que o parlamento e a sociedade organizada possam democraticamente atuar para corrigir os desvios que acometem a política de segurança pública, quase exclusivamente limitada a ações repressivas, violentas, social e racialmente seletivas.

Não fosse tudo isso, no esforço de escamotear os dados da violência policial, o Estado brasileiro sinaliza, senão o estímulo, sua conivência com a instalação de um ambiente de “vale-tudo” e “liberou-geral” nas ações policiais, fator de fomento de ainda mais violência.

Procurando, ao que parece, ser simpático às corporações policiais que majoritariamente o apoiam, o governo presta um desserviço à causa da verdadeira política de segurança pública, aquela que promove a paz e a convivência civilizada.

E não olvidemos haver relação direta entre o discurso que emana dos palácios governamentais, muitas vezes embalados pelo mais rasteiro populismo criminológico, e a bala que sai do fuzil do policial para atingir os pobres da periferia. Aqueles cidadãos que, para muitos, na verve do poeta uruguaio Eduardo Galeano, “custam menos do que a bala que os mata”.

Hélio Leitão,  Presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB.

Artigo publicado no jornal O Povo Online. 

Link: https://mais.opovo.com.br/jornal/opiniao/2020/06/19/helio-leitao–mais-uma.html#.XuyRtItye6w.whatsapp