Em conferência ocorrida na manhã desta quarta-feira (25/4) como parte integrante do II Congresso Internacional de Direito Administrativo e Administração Pública, em Brasília, os ministros do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp e Eliana Calmon e o senador Pedro Taques (PDT-MT) participaram de um prestigiado debate sobre a busca de um modelo para a administração do Poder Judiciário no Brasil.

O encontro dos três foi um dos mais aguardados entre as atividades do congresso. No dia anterior, o senador Pedro Taques havia declarado sobre a troca de farpas entre os ministros do STF Cezar Peluso e Joaquim Barbosa que, em um país sério, o episódio incorreria em crime de responsabilidade nos termos da lei. Taques, que irá integrar a CPI que investiga as relações do empresário Carlinhos Cachoeira com autoridades políticas, teve que deixar a conferência antes do seu término por conta da ocorrência da primeira reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito na manhã desta quarta feira. O senador era aguardado no encontro que definiu os nomes do presidente e do relator do colegiado que vai investigar o tráfico de influência operado pelo bicheiro.

Taques, durante sua fala, fez diversas referências ao Caso Cachoeira, a maior parte delas em tom de anedota. “O Brasil é o único lugar em que cachoeiras possuem deltas”, disse o senador, conseguindo gargalhadas da plateia em palestra que debatia o papel do STF como legislador positivo.

Primeiro a falar, o ministro Gilson Dipp, que preside o grupo de trabalho que formula o anteprojeto do novo Código Penal, expôs um panorama dos imensos problemas na Justiça penal brasileira que o novo Código terá de contemplar. A previsão é que o anteprojeto seja apresentado ao Congresso em maio.

Novo Código
“Sabemos que haverá um intenso debate no foro apropriado, que é o Parlamento”, disse Dipp ao falar, entre outros tópicos, da mudança de abordagem que o anteprojeto coloca em relação à prática médica do aborto. De acordo com o ministro, o aborto seguirá sendo tipificado como crime, mas os casos em que deve ser autorizado serão estendidos, mais bem detalhados e dependerão de laudos médicos e psicólogicos. “O aborto é mais uma questão de saúde pública do que tema de Direito Penal”, avaliou.

Em seu desabafo, o ministro Dipp apontou também para o que entende por “dertupação do sistema penal” por conta da banalização do uso de Habeas Corpus. “O Habeas Corpus é um remédio da maior dignidade constitucional, mas sua banalização, ao ser empregado em qualquer instituto, leva ao descrédito”, disse o ministro. “Tornou-se substitutivo de qualquer tipo de recurso, a ponto de não termos mais sistema recursal no Brasil. Praticamente, não há mais sistema penal processual no país”, lamentou.

“A jurisprudência do STJ em Direito Penal está toda baseada em decisões de Habeas Corpus, até mesmo em casos de Ações Recisórias transitada por mais de dez anos”, disse Dipp.

De acordo com o ministro, um dos problemas causados pelo uso indiscriminado de Habeas Corpus é que, pelo fato de este ser um recurso rápido e de não requerer maiores prazos, a jurisprudência envolvendo o sistema processual penal tem perdido em profundidade e aprimoramento.

Ainda segundo Dipp, a raiz de todos os males reside no fato de o país ter um Código Penal com 72 anos de idade. O anacronismo resultou na edição de mais de 140 leis editadas para suprir suas carências. “É um sistema caótico. Dessas 140 leis, 50 foram feitas explicitamente para mudar o Código Penal, e dois terços, criadas após a Carta de 1988”, disse.

Bizantino e lento
Segundo a falar, o senador Pedro Taques iniciou desculpando-se por ter que reduzir sua fala para vinte minutos por conta da realização da primeira reunião da “CPI do Carlinhos Cachoeira”. Taques disse que a questão base ao se pensar a gestão da Justiça no Brasil é avaliar o papel do STF como legislador positivo frente à ausência do Poder Legislativo.

Taques lembrou que até o período anterior à Revolução Francesa, os parlamentos europeus não formulavam leis, apenas fiscalizavam o governante, e que com a mudança de perfil, o Legislativo passou a ter uma posição central nas democracias. Dessa forma, quando o Parlamento não assume suas atribuições, a dinâmica de poder desequilibra-se, a exemplo do que ocorre no Brasil, segundo o ministro. “A principal questão é se o STF apenas interpreta ou também escreve a Constituição”, questionou o senador . “E temos que também perguntar se as decisões do STF, como principal intérprete da Carta, encontram foro de constitucionalidade”, seguiu perguntando.

A resposta é “não”, de acordo com Taques, que citou casos como o Mandado de Injução 712 (sobre o direito de greves de servidores públicos) e o processo referente à demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em que a decisão do Supremo ofendeu o Artigo 2º da Constituição, segundo ele. “O Congresso Federal é omisso com suas obrigações constitucionais. O processo parlamentar no Brasil e bizantino e lento, e hoje nos tornamos despachantes de questões de orçamento para o Executivo. E o Congresso não deveria ser um ‘puxadinho’ do poder Executivo”, disse.

Em tom de anedota — inclusive ao falar de sua semelhança física com Carlinhos Cachoeira —, o senador criticou o que chamou de “déficit de democracia e legimidade na indicação de ministros do STF, um caminho para aparelhagem da corte”, segundo ele. Taques classificou como farsa o processo de sabatina de ministros de Supremo no Senado, lembrando que, enquanto nos Estados Unidos algumas sabatinas já se estenderam por meses, no Brasil, tudo se resume a poucas horas.

O senador explicou ainda que, no mundo antigo, os intérpretes da realidade eram oráculos e cabia a eles ler a sorte da vida pública nas entranhas de animais mortos durante ritos. Hoje,  os intérpretes da lei, segundo o senador, conferem, antes de tudo, sentido e entendimento as normas, “onze semi-deuses pelos quais passam as mais relevantes questões da sociedade”.

Poder sem projeto
Última a falar, a ministra Eliana Calmon, cuja apresentação era a mais aguardada, começou avaliando a repercussão de sua atuação frente à Corregedoria Nacional de Justiça. “Dizem que sou bombástica e midiática, mas poucos prestam atenção no mérito do que falo”, disse. A corregedora afirmou ser encantada pelo que se passa nas entranhas do Judiciário e que atuar no CNJ lhe permitiu conhecer os meandros do funcionamento do Poder.

Para Calmon, os problemas de gestão na Justiça brasileira decorrem da demora do Brasil em realizar uma revisão crítica do Direito, processo iniciado em muitos países após a II Guerra. De acordo com a ministra, o ano paradigmático da Justiça brasileira foi 1990, quando ficou flagrante a incapacidade do Judiciário em atender as multidões que recorreram aos tribunais frente ao confisco de fundos promovido pelo governo Collor.

“Percebemos que éramos um poder desaparelhado para defender as tutelas de urgência”, disse Eliana Calmon. “Os magistrados não sabiam como trabalhar com urgência e desconheciam como proceder em termos de Direito coletivo, julgando a avalanche de ações judiciais separadamente, processo a processo”, afirmou.

“Foi então que a perplexidade tomou conta do Judiciário e percebemos que tinhamos que consertar o carro com o mesmo em movimento, o que ocorreu quando o legislador veio ao socorro com a Emenda 45 em 2004”, contou. “Não falo mal do  Poder Judiciário, estou falando de história. Éramos um Poder sem projeto”, disse.

Segundo a corregedora, “os pontos luminosos” da Emenda Constitucional 45 foram a criação do Conselho Nacional de Justiça e da Escola de Magistratura, iniciativas que permitiram iniciar o processo de revisão do Judiciário em profundidade no Brasil.

Eliana Calmon disse ainda que os problemas da Justiça brasileira estão enraizados na história do país. A ministra relatou que, ao prefaciar um livro sobre o Tribunal de Justiça da Bahia e ter de estudar um pouco sobre o Tribunal da Relação (criado em 1587 e instalado somente em 7 de março de 1609 naquele estado), percebeu que a primeira corte do Brasil sofria dos mesmos problemas que os tribunais brasileiros hoje. “Os defeitos dos juízes portugueses de então foram completamente assimilados pelos brasileiros. Estamos, na verdade, tendo que superar uma cultura”.

A corregedora disse ainda que sua função no CNJ é “ingrata e antipática”, o que provocou uma forte reação dos juízes, sobretudo, das associações, que, segundo Calmon, “não aceitam qualquer interferência”. “Não buscamos simplesmente a punição, mas a uniformidade do Judiciário, disse, ao contar sobre um caso, sem citar nomes, em que verificou que um juiz de primeira instância tinha salário de R$ 40 mil mensais e um desembargador, de R$ 100 mil. “Sou contra a PEC da Bengala porque temos que nos desfazer de alguns dinossauros. Tenho encontrado dembargadores que não leram a Constituição de 1988”, provocou Eliana diante das risadas da plateia.

“Denunciei no Senado a infiltração, no CNJ, de membros que pretendem dertupar sua natureza. Não podemos retroceder, pois se perdermos a credibilidade, o objetivo de adequar o Judiciário à Constituição de 1988 estará comprometido”, disse.

No fim de sua fala, a ministra recebeu, em vez de perguntas, uma denúncia contra um juiz de 1º grau no estado de Tocantins. O mediador da mesa então comunicou, ao microfone, que entregava o papel que descrevia a denúncia, em mãos, à ministra corregedora.

 

Fonte: CONJUR