Ronald Harry Coase, em um curto e bem humorado texto autobiográfico, informa que nasceu no dia 29 de dezembro de 1910, precisamente às 15h25min, um detalhe por ele conhecido graças à natureza metódica de seu pai, que registrou o fato em seu diário.[1] E por falar em seus ascendentes, eles eram empregados do Royal Mail, os correios britânicos. Pessoas de classe média baixa, moradores de Willesden, subúrbio de Londres, sem educação formal superior (ambos deixaram a escola aos 12 anos) e pouco interessados em graus universitários, embora fossem apaixonados por Literatura e, em igual medida, por práticas esportivas.

O Reino Unido, a pátria de Ronald Harry Coase, em maio de 1910, havia perdido seu monarca, Eduardo VII, filho da rainha Vitória e pai de Jorge V, o monarca com alma de proprietário rural do Sussex, que conduziria a Nação e o Império nos anos cinzentos da I Guerra Mundial. Eduardo VII era considerado o “fiador da paz na Europa”. Com sua morte, os britânicos assistiriam ao início do fim de sua supremacia global.

O jovem Coase viveu sua infância relativamente tranquilo. Ao menos, em sua notícia autobiográfica, não se detém na descrição da guerra, muito menos de seu impacto na vida familiar. Sabe-se que ele teve problemas ortopédicos e que foi precocemente admitido no ginásio. Apesar do erro na citação de Shakespeare, os esforços dos pais em sua formação terminaram por ser recompensados. Ele ganhou uma bolsa de estudos para a Kilburn Grammar School.

Entre a vocação para ser historiador ou químico, Coase optou por seguir a London School of Economics (LSE), por não se considerar suficientemente bom para a História, em razão de seu nível de conhecimento de Latim, nem para a Química, por conta da Matemática. A entrada na LSE não se poderia dar em um ano mais fatídico: 1929, em plena crise internacional ocasionada pelo crack da Bolsa de Nova York.

Sua aplicação aos estudos na Faculdade de Economia conferiu-lhe a prestigiosa bolsa Sir Ernest Cassel Travelling Scholarship, que lhe permitiu viver os anos acadêmicos de 1931-1932 nos Estados Unidos da América. Ainda na LSE, graças a Arnold Plant e ao seu interesse na disciplina de Direito Industrial, ele se interessou pela teoria smithiana da “mão invisível” e pelo modo com as empresas se organizavam. O Direito e a Economia entrelaçavam-se no espírito do jovem bolsista britânico. Mas, a passagem norte-americana foi decisiva para que ele desse vazão a questionamentos inquietantes sobre o porquê da existência das empresas e o que move os empresários, os operários e os gestores.

A precocidade de estudos ou descobertas geniais parece ser uma nota característica das “mentes brilhantes”. O jurista Savigny (teoria da posse) ou o matemático John Forbes Nash (equilíbrio de Nash) são dois exemplos clássicos disso. Em 1932, Ronald H. Coase, aos 22 anos incompletos, proferiu uma palestra histórica em Dundee, na qual apresentava as principais ideias de um artigo publicado em 1937, cujo título é The Nature of the Firm. Nesse estudo, Coase indaga: a) por que existem as empresas (há aqui um problema sério de tradução, pois, no Brasil, o termo consagrado éfirma)?; b) quais os fatores determinantes de seu tamanho? Na tentativa de responder a essas perguntas, o então professor da LSE desenvolveu o conceito de “custos de transação”: uma empresa ao firmar um contrato ou ao decidir rompê-lo incorre em custos. O que é mais vantajoso? Sob a óptica puramente jurídica, a ruptura do contrato é vista como uma conduta desvaliosa, um ilícito, salvo quando se está autorizado por uma excludente (fortuito; exceção do contrato inadimplido). Mas, sob a análise econômica, pode ser mais oneroso manter esse contrato, o que implicaria reconhecer o pagamento da cláusula penal como algo mais interessante. Outro ponto de interesse está na necessidade de que os agentes econômicos tenham informações, possam processá-las e negociar com os outros agentes.

No ano de 1932, Coase dá início a sua carreira acadêmica formal como professor na Dundee School of Economics and Commerce (1932-1934) e, posteriormente, na University of Liverpool (1934-1935). Em 1935, ele retornou a sua alma mater, a respeitável LSE. Esse período correspondeu aproximadamente ao que Winston Churchill denominou de “anos do gafanhoto”, o período do “governo nacional” de Ramsay MacDonald (Partido Trabalhista). Era uma alusão metafórica ao Livro de Joel (I: 3, 4, 5 e 9 , 10) e ao fato de que, nesse período, os britânicos poderiam ter impedido a ascensão de Hitler na Europa e reordenado suas Forças Armadas, de modo a dissuadi-lo da guerra que terminaria por começar em 1939.

Na II Guerra Mundial, Ronald C. Coase assessorou o Gabinete de Guerra, atuando no Escritório Central de Estatísticas. Foram tempos difíceis para Coase e que marcaram profundamente sua concepção de mundo e de vida social. Seu contacto com os burocratas foi desesperador. A perspectiva de uma invasão alemã e do colapso econômico do Reino Unido não conseguiu extrair de seus colegas de serviço público, em sua opinião, nada além de baixezas e intrigas. Em um de seus inspirados discursos, Churchill afirmou que, se o Império Britânico durasse mais mil anos, os homens ainda haveriam de dizer que aquela foi sua melhor hora.[2] Para Coase, aquela seria a “pior hora” da burocracia.

No final da guerra, apesar da vitória britânica, numa típica reviravolta de um Estado democrático, Churchill, então primeiro-ministro, foi derrotado nas eleições gerais. O ganhador nas urnas foi o major Clement Attlee, seu vice-primeiro-ministro e líder do Partido Trabalhista. Em 1946, Coase reassumiu suas funções docentes na LSE.

Seu retorno aos Estados Unidos ocorreu em 1948, por um curto período. Mas, em 1951, ele imigrou para a América do Norte. Em seu novo país, ele assumiu a cátedra nas universidades de Buffalo e, depois, da Virgínia.

Desde o final da guerra, Coase passou a se dedicar ao estudo dos serviços públicos, especialmente radiodifusão e telecomunicações. Ele produziu análises profundamente críticas do modelo da British Broadcasting Corporation (BBC) e, nos Estados Unidos, elaborou um estudo igualmente crítico da regulação dos serviços de radiodifusão a cargo da Federal Communications Commission. Em 1961, ele publicou o artigo The Problem of Social Cost, segundo ele mesmo, “um sucesso instantâneo” e “é provavelmente o artigo mais citado em toda a literatura econômica moderna”.[3] Nesse artigo, a questão da “externalidade” é enfrentada de uma maneira totalmente inovadora. O pensamento tradicional considerava que o Estado deveria intervir e limitar a ação dos agentes econômicos quando, no exercício de suas atividades, produzissem “externalidades negativas”. Surge, nesse artigo, o famoso “Teorema de Coase”, que propõe uma solução adequada para as externalidades, por intermédio da negociação entre os agentes, que serão tão mais livre quanto os direitos de propriedade estiverem bem definidos pelo Estado e não houver custos de transação (ou, se existirem, eles forem quase nulos).

Seus escritos foram contestados por professores da University of Chicago e, num exemplo que deveria ser imitado no Brasil, onde as críticas acadêmicas são muita vez personalizadas e sujeitas aoargumentum ad hominem, Coase foi convidado a debater suas ideias em Chicago.

Em suas palavras, em 1964, “eu me transferi para University of Chicago e tornei-me editor do Journal of Law and Economics”, função ocupada até 1982, na idade de 71 anos. Segundo Coase, essa revista foi decisiva para a criação de um novo campo de estudos, intitulado Law and Economics.

Mesmo aposentado, Coase prosseguiu firme em seus estudos e na divulgação de suas ideias e do que hoje se costuma denominar em português de Análise Econômica do Direito. Em 1977, ele se tornou pesquisador sênior da Hoover Institution, na Stanford University. Posteriormente, recebeu doutorados honorários em diversas instituições como Yale, Colônia, Washigton. Dundee e Paris.[4]

O velho professor de Chicago, o filho dos servidores públicos londrinos, nascido na era eduardiana, deixou-nos na segunda-feira, 2 de setembro de 2013, aos 102 anos. Sua vitalidade e o amor ao conhecimento científico dotavam-no de uma capacidade física incompatível com uma idade tão avançada. De cadeira de rodas, ele participava de conferências, gravações na televisão e na internet.

Para além de uma vida intelectual tão plena e de invulgar dignidade acadêmica, por que esta coluna é dedicada a Ronald Harris Coase?

Muitas razões poderiam ser indicadas. Duas, porém, são suficientes.

A primeira é que ele foi agraciado, em 1991, com o Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel, o famoso Prêmio Nobel de Economia, por sua contribuição para a descoberta dos efeitos dos chamados “custos de transação” para o funcionamento da Economia, além de ter ajudado a explicar a origem e a natureza das empresas.[5]

A segunda razão está em sua enorme importância para o Direito contemporâneo de seus artigos, que foram reunidos posteriormente em uma obra intitulada The Firm, the Market, and the Law, cuja tradução será publicada em breve no Brasil, pela editora Forense Universitária, na Coleção Paulo Bonavides, dirigida por este colunista e pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. Em torno das ideias de Coase, seus discípulos e sucessores, há um significativo grupo de instituições universitárias nacionais que orientou seus estudos pós-graduados para o estudo de Law and Economics, como a Universidade de São Paulo, a Universidade Católica de Brasília, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a Fundação Getúlio Vargas (Rio de Janeiro e São Paulo), entre outras.

Evidentemente que há diversas ramificações da Análise Econômica do Direito, com relativa independência das ideias originalmente lançadas por Coase nos anos 1930-1960. A estirpe desse pensamento, contudo, é inegavelmente coaseana.[6] É também notável a evolução quantitativa e qualitativa das publicações sobre a obra de Ronald Harry Coase e seus desdobramentos no Direito e na Economia.[7] A utilização do referencial econômico para a análise do Direito não é unânime e tem recebido críticas. Mas, o mérito e a originalidade da obra de Coase, conquanto que se lhe façam reservas, são inegáveis. Ele foi um dos gigantes do pensamento humano no século XX e conseguiu estabelecer firmes pontes de diálogo entre o Direito e a Economia.


[1] Essa nota autobiográfica está disponível em: COASE, Ronald H. Coase. Biographical.http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/economic-sciences/laureates/1991/coase-bio.html. Acesso em 2-9-2013.
[2] “This was their finest hour”.
[3] COASE, Ronald H. Coase. Biographical. http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/economic-sciences/laureates/1991/coase-bio.html. Acesso em 2-9-2013.
[4] Informações extraídas de: http://www.law.uchicago.edu/faculty/coase. Acesso em 2-9-2013.
[5] Excertos da justificativa da Real Academia para a outorga do Prêmio Nobel para Ronald H. Coase. Disponível em: http://www.trinity.edu/nobel/Coase_files/Coase.htm. Acesso em 2-9-2013.
[6] BARBOSA, Eraldo Sergio. Ronald Harry Coase. Universa : Revista da Universidade Católica de Brasília, v. 3, n. 1, p. 203-224, mar. 1995.
[7] Freitas, Kelery Dinarte Páscoa. Reflexões acerca da eficiência na visão da Análise econômica do direito : aspectos conceituais e sua criticidade. Revista da Defensoria Pública da União, n. 5, p. 117-139, out. 2012; Marques, Leonardo Albuquerque. Ações preferenciais e ações ordinárias : uma comparação sob a lógica da ação coletiva e sob o teorema de Coase. Revista de direito empresarial, v. 9, n. 2, p. 81-107, maio/ago. 2012; TIMM, Luciano Benetti (Org). Direito e economia no Brasil. São Paulo : Atlas, 2012; OLIVEIRA, Amanda Flávio de. Análise econômica do direito do consumidor em períodos de recessão : uma abordagem a partir da economia comportamental. Revista de direito do consumidor, v. 21, n. 81, p. 13-38, jan./mar. 2012; Carvalho, Nathalie de Paula. A teoria econômica da propriedade no neoliberalismo. Revista jurídica da FA7, v. 7, n. 1, p. 203-216, abr. 2010; SALAMA, Bruno Meyerhof (Org). Direito e economia : textos escolhidos. São Paulo : Saraiva : FGV : 2010; SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa : atividade empresária e mercados. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2010; GICO JR., Ivo. Metodologia e epistemologia da análise econômica do direito. Revista de direito bancário e do mercado de capitais, v. 13, n. 47, p. 25-65, jan./mar. 2010.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo).

 

Fonte: CONJUR