Paulo Maria de Aragão (*)

O ser humano, animal diurno, dorme à noite e trabalha durante o dia. Por ser essa a sua natureza, a inversão de horário afeta seu relógio biológico. Exemplo caricatural desta subversão reflete-se nos versos do samba de breque “Café Soçaite”, cantado por Jorge Veiga, no qual o malandro grã-fino jacta-se com o“chanté, muito merci allright, troquei a luz do dia pela luz da light”. Duas afetações à saúde: a do cantor pela necessidade do trabalho e a do boêmio pelos excessos noturnais, bebendo e sonhando com a felicidade, vê dissoluto nascer o Sol.

Há de se observar que a constituição orgânica tem limites. Obreiro noturno é preterido em certas medidas de proteção à saúde física e psíquica, destinadas a compensar o desgaste sofrido por causa do lapso temporal de sua jornada -entre as 22h de um dia e as 5h da manhã seguinte – conquanto faça jus ao adicional de 20% incidente sobre a hora diurna e ao cômputo reduzido, fictamente, da hora de trabalho como de 52 minutos e 30 segundos.

Nesse cenário, é difícil compreender o desserviço da Súmula 265 do Tribunal Superior do Trabalho, ao sustentar que, vindo o obreiro a ser transferido para trabalho diurno, o empregador poderá abster-se de pagar-lhe o respectivo adicional, pouco importando o tempo decorrido, em manifesto descompasso com adicionais similares.

A mudança de horário para dormir, fator prejudicial do labor noturno, submete seus prestadores a riscos, ampliando problemas psicofisiológicos oriundos da fadiga. Especialistas alertam para a predisponência à hipertensão arterial, arritmias e doenças cardíacas, devido ao aumento de substâncias estressoras. Denota gravidade, ainda, a advertência sobre a possibilidade do aparecimento de cânceres, porque muitos dormem durante boa parte do dia e não recebem a luz solar, restringindo a produção da vitamina D3.

Há outras gravosas consequências à saúde: indução à obesidade, ao diabetes, ao aumento do “mau” colesterol (LDL) e a acidentes do trabalho, responsável por significativo contingente de mutilados e exauridos. Além disso, esses prestadores de serviços ficam mais sujeitos aos riscos assombrosos da incontida violência urbana. Noutra vereda, durante o dia, dormem menos (em relação ao descanso noturno) e esse repouso apresenta baixa qualidade; logo não dispõem do necessário sono restaurador e da mínima interação aceitável com a família nos horários que lhes são reservados.

Esse espaço clínico é desprezado pela Súmula 265 do Tribunal Superior do Trabalho, quando comenta da alteração do turno laboral: “A transferência para o período diurno implica a perda do direito ao adicional noturno”. O entender jurisprudencial passa ao largo dos prejuízos ocasionados, em caráter permanente, à saúde, às finanças e ao contexto familiar do trabalhador

Pelo que se colhe, os princípios projetivos da saúde turvam-se e desassestam-se dos pontos cardeais da dignidade, um dos pilares do ordenamento constitucional, centro gravitacional, tendo o ser humano como precípua causa para quaisquer reflexões jurídico-filosóficas.

Por essa linha de pensamento, compartilha-se a posição dos que defendem a incorporação remuneratória do adicional vertente, haja vista a supressão afrontar o art. 468 da CLT, ao acentuar que, alteração nas disposições do contrato só se reveste de licitude por mútuo consentimento, e, ainda assim, desde que não gerem, de forma direta ou indireta, prejuízos ao empregado. No mesmo norte, prescreve o art. 444 do Estatuto: “o contrato, como negócio jurídico bilateral, permite a livre negociação das partes, contanto que respeite as disposições protetivas de trabalho aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes”.

Os seguidores dessa opinião sustentam, além disso, solidamente, argumentos à incorporação do adicional noturno a título de direito adquirido, vendo a sua perda como esbulho jurídico contra aquele que se dedicou à faina noturna, muitas vezes, por anos a fio. Implausivelmente, o entendimento do TST atinge o bolso do trabalhador, que não é máquina produtora de serviços, e já estará muitas vezes acometido por danos irreversíveis à saúde física e à psíquica.

É inaceitável que a dignidade e os interesses do empregado noturno não tenham, por igual, sido considerados como causa última do Direito. Enfatize-se: os tratados filosóficos e de Direito impõem como dever conformar o arcabouço jurídico ao ser humano, e não este àquele. O tema comporta desdobramentos por não condizer com a imperativa preservação do equilíbrio financeiro do hipossuficiente. Sabe-se que o labor diurno lhe é benéfico, mas há danos quando de sua transferência ex vi da perda do adicional.

E, assim, na contramão dos interesses do obreiro, a corte editou a despropositada Súmula 265, para – em situação análoga – depois discriminá-la perante a de nº 372, I, prevendo a incorporação da gratificação de função. Veja-se, o seu texto: “Supressão ou redução. Limites – I Percebida a gratificação de função por dez ou mais anos pelo empregado, se o empregador, sem justo motivo, revertê-lo a seu cargo efetivo, não poderá retirar-lhe a gratificação tendo em vista o princípio da estabilidade financeira”.

No esteio, sob idêntico vetor principiológico, o TST, acertadamente, minimizou o impacto econômico sofrido pelo empregado diante da supressão parcial ou total do adicional devido no labor extraordinário prestado durante pelo menos 1 (um) ano. Para ampará-lo, a Súmula 291, assegurou-lhe indenização correspondente ao valor de 1 (um) mês das horas suprimidas, total ou parcialmente, para cada ano ou fração igual ou superior a seis meses de prestação de serviço acima da jornada normal.

Como se depreende, a decisão sumular acima pormenorizada e a de nº. 372 se harmonizam com o recorrente princípio da estabilidade financeira. Exsurge-se o pensar de que o TST manteve ao deus-dará os empregados noturnais, tendo em vista a perda do direito ao adicional pertinente, parcela remuneratória baldada pela Súmula nº 265, do TST.

Na verdade, o tratamento do TST, no tocante à perda da gratificação de função e a eliminação de horas extras, deveria haver servido de paradigma para modificar a Súmula 265 – recomendando a incorporação ou a indenização do adicional noturno expungido. Destarte, para a questão, seriam implementados os mesmos critérios consubstanciados nos verbetes 291 e 372, na perspectiva de evitar o impacto da redução salarial. Por que, então, a corte não dispensou o mesmo tratamento àqueles desfeitos do adicional noturno? Pelo que foi dito, o dano financeiro destes é até mais corrosivo.

Deflui-se que o TST destina às hipóteses cotejadas dois pesos e duas medidas, desconsiderando o princípio da igualdade, consagrado pela Lei Maior. Com efeito, não contempla a incorporação ou o caráter indenizatório do adicional noturno na situação prescrita pela Súmula 265; não é justo admitir somente, como certa, se for para assegurar o ganho da gratificação funcional ou indenizar a supressão de horas suplementares. Portanto, questiona-se: diante da similaridade das situações, por que é inaplicável o princípio da estabilidade financeira ao trabalhador noturno? Nítido, pois, que se enfrenta uma discriminação de natureza casuística, e indaga-se como no final do samba “Café Soçaite”: “Como é que pode?”.

(*) Paulo Maria de Aragão é advogado e professor, membro do Conselho Estadual da OAB-CE e titular da Cadeira de Nº 37 da Academia Cearense de Letras Jurídicas (ACLJ).