Primeiramente, é importante destacar que, atualmente, o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. A súmula 394, do STF, foi cancelada. Tal súmula tinha o seguinte teor:cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”.

De toda sorte, em regra, se o parlamentar federal (Deputado ou Senador) está respondendo a uma ação penal, no STF, e renuncia ao cargo antes de ser julgado, cessa o foro por prerrogativa de função, e o processo é remetido para julgamento em primeira instância.

O foro privativo é uma prerrogativa do cargo ocupado, não da pessoa física. Assim, se o indivíduo deixa de exercer o cargo de Deputado Federal ou de Senador, em regra, não há mais motivo para que ele continue a ser julgado pelo STF. Isso se relaciona à “regra da atualidade”, ou seja, tratando-se de crimes cometidos, por detentores de foro privativo no STF, durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas, a competência será do STF somente enquanto durar o cargo ou mandato.

Contudo, após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.

Fora desse marco temporal (publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais), apenas excepcionalmente, se demonstrado que a renúncia caracteriza-se como fraude processual (atrasar processos, facilitar a ocorrência de prescrição), o STF continuará sendo competente.

O foro por prerrogativa de função, mesmo com as restrições hodiernas, sem dúvidas, não está em consonância com uma democracia consolidada.

Entretanto, para começar, o Brasil não é uma democracia consolidada e, num país em que a população valoriza mais o futebol e a copa do mundo que as eleições e as suas consequências, o foro por prerrogativa de função é apenas um dos sintomas dessa constatação simples.

De toda sorte, os detentores de cargos públicos, no geral, e os parlamentares, em especial, acreditam ser especiais e serem merecedores de toda a sorte de distinções, de privilégios e de rapapés. Por conta dessa atávica mentalidade, atrelada ao patriarcalismo, ao clientelismo e ao patrimonialismo, o foro especial permanece, muito bem acompanhado por nossas chagas sociais. E, em verdade, toda a sorte de privilégios permanecerá enquanto a sociedade brasileira perpetuar-se dividida entre representantes e representados, com estes sendo indivíduos pertencentes a uma realidade completamente distinta daqueles.

Num Estado em que as autoridades exigem ser tratadas vernaculamente por Vossa Excelência, ainda que sejam bandidas, e o povo é tratado como “tu”, mesmo sendo quem banca toda a estrutura estatal, a projeção de consolidação da democracia é uma utopia.

Mas, à semelhança dos portugueses, que ainda esperam o retorno do redentor Rei Dom Sebastião, os brasileiros – bestializados, educados pelas telenovelas e pela Netflix e patriotas enquanto a seleção brasileira de futebol, a cada 4 (quatro) anos, ainda que jogando mal, ganha seus jogos na Copa do Mundo, cada vez mais conformados a apenas aliviar suas revoltas, nas redes sociais, no âmbito dessa sociedade sinóptica, tão bem descrita por Zygmunt Bauman – seguem acreditando que algum salvador da Pátria – eleito por meio desse sistema eleitoral aristocrático e ultrapassado, que nos obriga a escolher entre candidatos ruins e péssimos, todos frutos podres da mesma árvore envenenada e condenada desde os bíblicos tempos – poderá promover, sem sangue, suor e lágrimas coletivas, a mudança estrutural que necessita este país, o que inclui o fim de todos os resquícios antirrepublicanos, que discriminam governantes e governados, o que abarca, sem dúvidas, a queda do foro por prerrogativa de função.

Antônio Samuel de Carvalho Colares
Advogado
Pós-graduando em Direito Constitucional