Paulo Maria de Aragão (*)

A fumaça dispersa deu sinal de fogo. Os agitos e as alegrias daquela noite enganadora abafam-se pelo sepulcral manto da morte. Adolescentes asfixiados e espremidos debatem-se como um pássaro numa armadilha. Tomados pelo pânico, tentam salvar-se a qualquer custo; sufocados, pisoteiam-se ante os horrores.

Centenas de jovens agonizam  e, logo, vão a óbito pela inalação de gases tóxicos. Amontoado de corpos, amontoado de sonhos de um amanhã promissor que os esperava, embalados pelo amor de pais e mães, professores e amigos. A nação e o mundo prostram-se pela dor. Consumou-se a tragédia de Santa Maria, que interrompeu tantas jovens vidas.

Resta à sociedade, como sempre, exigir justiça e inadmitir a impunidade! Este é um dos direitos de milhões de trabalhadores e contribuintes que desconhecem o princípio da responsabilidade pública e o dever fundamental de garantir a segurança social. Morte, morte, morte! Isso já faz parte do cenário cotidiano, consequentemente se despreza uma das verdades teleológicas: Aos olhos de Deus, a vida humana é o maior valor sobre a face da terra.

Mas, dissociado desse majestático ensinamento, o Estado encarna a negligência, a sanha arrecadatória e a gastança estimulada pelos ardis de famigerados agentes da corrupção. A sociedade permanece doente, despida de valores éticos e morais, regida pela impunidade que alimenta o desrespeito às leis.

A preocupação com o lucro é indisfarçável. Na boate Kiss, no início do tumulto, as pessoas não podiam sair, impedidas por seguranças, que não lhes permitiam deixar o recinto sem antes pagar o consumo. Salvadores, decerto, teriam sido os segundos perdidos. Injustificável é o seu funcionamento com a isenção de alvará. Nossa mentalidade, a mentalidade nacional, resistente a mudanças é preocupante. O Ministério Público do Rio Grande do Sul, em 07 de julho de 2011, havia pedido uma vistoria sanitária e a situação do plano de combate a incêndio da casa noturna. O documento foi firmado pelo promotor público João Marcos Adede y Castro, aposentado em dezembro último. Sua denúncia nasceu de pedidos dos próprios bombeiros porque, após as visitas, os proprietários não obedeciam às exigências feitas.

Cadê, portanto a fiscalização dos órgãos envolvidos na tragédia? É inaceitável a conjugação do conhecimento do risco e da negligência no exercício do poder de polícia. Por trás desse infortúnio, estão os abutres da corrupção, os empresários que não querem gastar dinheiro em segurança e a inexistência de pressões significativas por parte do governo.  Conta-se que, a exemplo de muitos outros tristes casos que caem no esquecimento coletivo – este seja mais um a ilustrar o cotidiano brasileiro.

A nação vai soçobrando na lama da degradação moral, ética e política. Para que valem as centenas de milhares de leis que se definham por falta de aplicadores? Precisamos limitar os limites e punir os que não os cumprem. Mesmo com julgadores probos, competentes e destemidos que cumpram o dever de magistrado, a partir das mais altas esferas do País, precisaremos apreender o sentido de uma mentalidade voltada ao bem coletivo. Nisso pode envolver-se a universidade. A Universidade que perdeu tantos futuros valores também está de luto. Sua missão reparadora pode ser a de ensinar a que as leis não podem e não devem ser burladas. Elas são universais e permeiam todas as esferas.

Desde cedo disciplinar o jeitinho brasileiro, do qual tanto nos envaidecemos, é obra de educadores. Enganar, mentir, furtar, ludibriar, corromper, cooptar para o ilícito, são caminhos que devemos abandonar todos eles distantes das noções do homem cordial do qual nos fala Sérgio Buarque de Holanda.

As dores e as angústias ora vividas na cidade universitária de Santa Maria integram o pesadelo da nossa falta de limites e observância às leis. Ó Virgem Maria, minha Santa Maria, como isso aconteceu?

* Advogado e professor.