Por Vanilo de Carvalho*

Nestes tempos de multidões, de explosão demográfica, de espaços terrestres ocupados, a verdade do tráfico humano se manifesta de forma expressa e só quem faz uma opção, covarde, de não ver, é que não leva a sério esta realidade. Logo no início de seu pontificado, o Papa Francisco, foi de barco, até a ilha italiana de Lampadusa, movido pelo espírito de compaixão, no sentido de solidarizar-se e de denunciar a situação calamitosa dos refugiados africanos que se submetem a qualquer tipo de situação, e muitos deles, a um sistema perverso de tráfico humano.

Disse ele naquela ocasião: “Ninguém chora estes mortos”, criticando “os traficantes” que “exploram a pobreza dos outros.” O favorecimento que as guerras provocam a uma forçosa mobilidade humana, acentua o tráfico de pessoas com os fins mais diversos, desde a exploração do trabalho até o abuso sexual, e envolvem até aberrações como a venda de órgãos. O tráfico humano existe desde imemoriais tempos. O filho do patriarca Jacó, José, foi a primeira vítima descrita pela Bíblia, tendo sido feito mercadoria e enganado pelo seu próprio pai. Na mácula indelével na História do Brasil, a escravidão de africanos, registra um sistema de fundamento legal, econômico e socialmente aceito, desde o início da colonização portuguesa até a Libertação dos Escravos pela corajosa Princesa Isabel. Hoje isso tudo, formalmente, parece passado.

Qualquer tipo de tráfico humano é crime, tipificado por lei em todo o mundo, repudiado pelos discursos governamentais e assunto merecedor de espanto para os comuns. Todavia, o que parece ser algo de uma história passada, renova-se com toda a força, e talvez manifestada através de uma situação de ignomínia antes nunca vista. Segundo o “Relatório Global de 2012 sobre Tráfico de Pessoas” do Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC), a maioria das vítimas da América do Sul é traficada dentro da região, em geral a países vizinhos relativamente mais ricos. “Vítimas oriundas da Bolívia têm sido detectadas no Brasil, Chile e Peru”, diz o UNODC.

“No Chile, detectaram-se vítimas do Brasil, Equador, Paraguai e Peru.” Espanha, Suíça e Holanda também são destinos frequentes de vítimas sul-americanas, entre elas as brasileiras. No entanto, poucos casos de tráfico envolvendo brasileiros são corretamente identificados na Europa. “Isso porque muitos brasileiros e brasileiras em situação de tráfico acabam sendo deportados como imigrantes indocumentados”, diz Fabiana Gorenstein, oficial de projetos do Centro Internacional para o Desenvolvimento de Políticas Migratórias (ICMPD), com sede em Viena. “Algumas vezes, nem as vítimas nem as autoridades percebem que estão frente a um caso de tráfico.”

Segundo Gorenstein, muitas pessoas vivem numa situação de vulnerabilidade tão acentuada no Brasil que, mesmo sendo traficadas e exploradas, ainda sentem uma dívida de gratidão para com o aliciador. O antes da História era uma situação formal, legal e socialmente aceita, hoje o pensamento da filósofa Hanna Arendt faz-se comprovada. A “A Banalidade do Mal” é real, própria de uma sociedade carente de senso crítico. O cumprimento de um dever que se restringe ao nosso próprio umbigo, que opta por uma cegueira a pertença de um tecido humano social, o cruel e mesquinho interesse exclusivamente no bem-estar individual, aprova, de fato, o tráfico humano, e porque não dizer, o exige.

Recentemente uma muito famosa e glamorosa internacional cadeia de lojas que tem uma filial em São Paulo, foi autuada pelo Ministério do Trabalho, por comprar manufaturas de trabalhadores bolivianos que vendiam o fruto de seu trabalho por centavos. Em condições degradantes de trabalho comparadas a trabalho escravo. Todos nós queremos comprar roupas de marcas a preços os mais baratos possíveis, mesmo sabendo que as peças da moda são feitas na Indonésia, no México, na Guatemala e aqueles valores só são possíveis a custa da própria vida daqueles que são vitimados pela pobreza e por um sistema de opressão consumista. Optamos por desconsiderar que esses trabalhadores não recebem direitos trabalhistas. O texto-base da Campanha da Fraternidade apresenta a reflexão que merece ser vivenciada por todos os brasileiros. A seguir, um pequeno trecho do escrito da CNBB: As vítimas são aliciadas em bolsões de pobreza, dentro e fora do país.

Nos últimos 20 anos foram libertadas 47 mil delas, em dois mil estabelecimentos de mais de 600 municípios. No campo, destaque para a pecuária, as lavouras do agronegócio e carvoarias. Nas cidades, a construção civil e oficinas de confecção. Para a exploração sexual, as informações quantitativas são precárias. O Brasil é tido como um dos grandes exportadores de mulheres a serem exploradas sexualmente, particularmente na Europa. Por aqui, a mobilização contra a escravidão contemporânea iniciou-se nos anos 1970, destacando-se a figura do bispo Pedro Casaldáliga e a atuação incansável da Comissão Pastoral da Terra. Acolheram fugitivos e tornaram públicas denúncias de trabalhadores escravizados em plena floresta amazônica.

A pressão em fóruns nacionais e internacionais acabou obrigando o Estado a assumir, em 1995, a causa da erradicação. A partir da ratificação do Protocolo de Palermo, tratado internacional sobre o tráfico de pessoas, em 2004, o Brasil adotou uma política nacional de enfrentamento a esse crime. A invisibilidade das práticas do tráfico e a cegueira de muitos são algumas das dificuldades para avançar no combate a esse crime. Há quem teime em negar sua realidade, a exemplo de ruralistas em sua busca para esvaziar o conceito legal e a política nacional de combate ao trabalho escravo.

Face à idolatria que sacrifica a dignidade e a liberdade no altar do lucro, ressoa a pergunta feita a Caim: “Onde está teu irmão?” Sim, o escândalo ainda perdura, com o José bíblico renascido sob outros nomes. De nós depende que ele possa sair da invisibilidade, levantar-se, conquistar seus direitos. Oportunamente este é o desafio proposto à sociedade pela Campanha da Fraternidade lançada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. “Tráfico humano e Fraternidade” é seu lema. E, você, que veste as roupas produzidas por tantos Josés, come o fruto de seu trabalho e mora em residências erguidas por suas mãos, saberia responder onde, neste momento, está teu irmão e tua irmã?

*Advogado, diretor acadêmico da Fesac, professor universitário, membro da Comissão de Ensino Jurídico, especialista em Direito Constitucional e Mestre em Negócios Internacionais.