A presidente da a recém-criada Comissão de Promoção da Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil seccional Ceará (OAB-CE), Raquel Andrade, concedeu entrevista ao Jornal O POVO e contou um pouco de sua trajetória profissional e pessoal. Ela também falou sobre a luta pelo direito às políticas afirmativas que beneficiam grupos historicamente excluídos dos espaços de poder e decisão na sociedade brasileira. A entrevista foi publicada na edição de sábado do jornal. Leia na íntegra:

“A pobreza no Brasil tem cor e tem raça” , diz Raquel Andrade

É mulher, negra e com origens periféricas a advogada que presidirá a recém-criada Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB-CE

Por Vítor Magalhães

Mulher, negra, com origens periféricas e advogada nomeada para presidir a recém-criada Comissão de Promoção da Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil seccional Ceará (OAB-CE). Essas são algumas das características que compõem a formação de Raquel Andrade dos Santos, 34, filha do bairro Bom Jardim.

Em 2020, o debate sobre a pauta racial ganhou mais força na comunidade mundial e dentro da OAB não foi diferente, inclusive com discussões em andamento sobre criação de percentual mínimo de cargos e funções de liderança internos a serem ocupados por advogados e advogadas negros. Percebendo a urgência da pauta e o clima favorável, Raquel solicitou o processo de criação da Comissão que hoje preside; aprovado há cerca de um mês, por unanimidade de votos no Conselho Estadual.

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Durante o processo de feitura deste material, Raquel recebeu a repórter fotográfica Bárbara Moira em casa, no dia 17 de setembro, para providenciar a imagem que dá rosto à entrevista. A fotojornalista do O POVO relatou reflexões e a conversa que teve durante o encontro, lastimando a ausência do repórter que escreve esse texto – e também lamenta. É que a entrevista foi feita por telefone.

Raquel conversou com O POVO por volta das 21 horas do mesmo dia e contou um pouco de sua trajetória profissional e pessoal e como ambas abraçam-se com a luta pelo direito às políticas afirmativas que beneficiam grupos historicamente excluídos dos espaços de poder e decisão na sociedade brasileira.

O POVO: A senhora foi nomeada no final de agosto para presidir a Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB-CE. Quais os desafio da gestão?

Raquel Andrade: A comissão foi criada no sentido de desenvolver ações diversas voltadas para a produção do conhecimento que levantem, dentro e fora da OAB, a discussão e a defesa de questões étnicos raciais. Então o objetivo é alterar as estruturas. A OAB está inserida dentro de uma sociedade que, infelizmente, tem repercussões em seu cotidiano do racismo estrutural. E isto é algo inegável. Essas repercussões muitas vezes têm como consequência atos que promovem o racismo institucional, então a OAB-CE, neste momento, volta seu olhar para que a desigualdade em função da raça e da etnia, não seja um traço que venha a aderir às políticas e as ações da instituição. Os desafios são muitos porque há necessidade de políticas afirmativas de inclusão de advogados negros, indígenas e pardos dentro do sistema. Essa gestão está aberta para isso e nós precisamos promover em um primeiro momento uma interlocução. A ideia é que os espaços poder dentro da OAB-CE sejam locais onde negros e negras tenham seu lugar de fala e de protoganismo garantido. A ideia é promover um diálogo estreito com movimentos da sociedade civil organizada e com equipamentos do estado que promovem políticas públicas de igualdade racial. Aqui quero destacar o trabalho da professora Zelma Madeira que é coordenadora de promoção de políticas para a igualdade racial no Estado e foi uma grande incentivadora da criação desta comissão. Então temos muito o que aprender com essas pessoas que já estão há mais tempo na vivência da promoção da igualdade racial e queremos ter uma gestão com ações sempre numa perspectiva coletiva, dialogando com quem está na linha de frente, com quem pensa e executa a política pública, com quem atua na esfera acadêmica, com movimentos de bairros e comunidades. Esse vai ser o caminho que nós percorremos dentro desta comissão de igualdade racial.

O POVO: Atualmente a OAB discute implementação de percentual mínimo para preenchimento dos cargos internos por advogados negros. A senhora acredita que essa política afirmativa na OAB pode influenciar outras instituições a adotarem atitude semelhante?

Raquel Andrade: A OAB precisa ser a referência quando se trata de políticas afirmativas e políticas de inclusão que fortalecem a democracia. Porque palavras por si só não mudam a estrutura ou o retrato da desigualdade, o que altera os fenômenos com que fazem que os números da violências sejam protagonizados por negros e negras é justamente a ausência de ações efetivas, constantes e que não sejam questionadas. Aqui não cabe a discussão sobre concessão de privilégios ou sobreposição de poderes. Essas ações que a OAB vem inserido internamente na verdade são medidas de reparação histórica, correções de desigualdade que foram introjetadas dentro do sistema no qual a OAB está inserida. Então é importante que se naturalize essas políticas como políticas reparatórias e, nesse sentido, considerando os mais de um milhão de advogados no Brasil e mais de 30 mil só no Ceará, é certo que essa atitude terá uma repercussão nos escritórios, nas empresas onde os advogados trabalham, nos órgãos públicos onde os advogados atuam e nos tribunais. Porque essas políticas ultrapassam os muros da OAB, elas se disseminam na prática da advocacia. Por isso é tão importante o protagonismo da OAB e a colocação de maneira relevante no que diz respeito à instituição de políticas para a igualdade racial.

“A OAB precisa ser a referência quando se trata de políticas afirmativas e políticas de inclusão que fortalecem a democracia”.

O POVO: No Brasil o racismo é claramente um tabu. Pesquisa deste ano aponta que 76% da população reconhece o racismo, mas menos da metade desse valor admite tê-lo praticado. Na sua análise, isso impacta no debate de inclusão?

Raquel Andrade: Vivemos num país pautado em um sistema escravocrata, oligárquico, elitista e patriarcal. Isso tem uma repercussão na estruturação do racismo brasileiro. Discutir raça hoje é fundamental para tratar de qualquer cenário de desigualdade. Só existe desigualdade social no país, porque houve uma estruturação socioeconômica pautada em um sistema escravocrata. As consequências dessa pseudo-abolição da escravidão que fez com que, após esse momento histórico, o povo escravizado fosse deixado à míngua sem assistência do Estado ou reparação, foram fundamentais para que as desigualdades sociais se estruturassem. “Hoje a pobreza no Brasil tem cor e tem raça”, então é certo e notório que existe uma questão racial que antecede uma questão social. Nesse sentido, essa naturalização do lugar da negritude no lugar da violência, da opressão, da subjugação, da inferiorização existencial, infelizmente faz com que tenhamos dificuldade de nos compreender e nos reconhecer racistas, o que dificulta ainda mais as práticas antirracistas. Porque para ser antirracista primeiro é necessário se reconhecer racista. É um trabalho que precisa ser feito numa perspectiva coletiva e estrutural dentro da sociedade brasileira. A inclusão se mostra, nesse primeiro momento, um caminho irrecusável e essencial para que haja uma discussão honesta e aprofundada no que diz respeito à promoção da equidade das existências. Precisamos equalizar existências e desconstruir uma estrutura que oprime e mata. A necropolítica que temos hoje fere, adoece, agride e tira vidas negras.

A necropolítica que temos hoje fere, adoece, agride e tira vidas negras”.

O POVO: No caso das mulheres negras, elas estão sujeitas a sofrer dupla discriminação; pela cor de pele e pelo gênero. Há necessidade de criar mecanismos específicos para garantir a representatividade de outras “minorias”?

Raquel Andrade: Para que essas políticas sejam adotadas de forma justa, eu não vejo outro caminho que não seja a garantia da combinação de elementos essenciais que são gênero e raça. As mulheres negras que hoje, infelizmente, compõem a base da pirâmide social são as que sofrem mais violência, que ganham menos, que sofrem inclusive dentro da perspectiva da racialidade uma dupla opressão em razão do gênero e da raça. Mas as mulheres negras são também o caminho. O caminho para a desconstrução do racismo e do machismo estrutural ele precisa ser construído e passa pelas mãos, e a partir da perspectiva existencial, das mulheres negras. As mulheres negras que são mães, mães solos, que fazem parte de organizações comunitárias, líderes, mulheres negras de terreiro, de comunidades quilombolas. Os braços fortes que sustentam esse País são os braços das mulheres negras. Somos nós que realizamos historicamente todo trabalho doméstico não remunerado e que por causa da não remuneração desse trabalho, é que homens, em regra brancos, ocupam os espaços de poder. Só há homens brancos no Congresso, nos espaços de decisão seja da política, da Justiça, porque na casa deles há uma mulher negra cozinhando, cuidando dos filhos, cuidando da casa e dando condições para que essas pessoas possam estudar, fazer carreira; e isso é histórico e sintomático no Brasil por conta da nossa cultura patriarcal e racista. Esse ciclo intergeracional de empobrecimento de mulheres negras é o grande motor da manutenção de um sistema de desigualdade que privilegia homens brancos.

O POVO: A OAB discute alguma ação nesse sentido?

Raquel Andrade: Enquanto mulher negra e periférica, sou do Bom Jardim, me formei como bolsista do Prouni então a minha formação é resultado de uma política afirmativa. E falo desse lugar. Quando cheguei na OAB, há quase 10 anos, eu vi uma composição. Quem entrega a carteira (de advogado) para a gente, quem está nas mesas, nas presidências das comissões, até pouco tempo a maioria eram homens brancos. Agora é que mulheres estão ocupando as presidências das comissões e os espaços de decisão, mas quando entrei não era assim. Então a primeira reflexão que fiz quando entrei, e isso é resultado de uma violência simbólica também, era que aquele lugar não era para mim. Que não era natural que eu, de onde vinha e com minhas condições de mulher, negra e periférica, que aquele lugar não me acolhia. Não era natural que eu estivesse ali. Então a minha comissão e a OAB vem empreendendo esforços para desnaturalizar situações como essa. Para que pessoas de grupos étnicos diversos que venham a se tornar advogados entendam que aquele é um lugar para elas e não um lugar acessório. Um lugar de protagonismo, como o local que ocupo hoje na presidência da Comissão de promoção da Igualdade Racial.

O POVO: Apesar de serem maioria da população, negros (pretos e pardos segundo o IBGE) são minoria entre eleitos, isso é reflexo da falta de investimento em candidaturas negras?

Raquel Andrade: Mais de 50% da população é composta por negros. A questão da “falsa democracia” é que se o poder emana do povo, se aqueles que estão nos espaços, não só no sistema político, mas no sistema de justiça, na OAB ou nos lugares onde a vida do cidadão é decidida. Essa é a grande questão, se ali não há uma representatividade que alcance a formação brasileira, étnica, racial e de gênero, até que ponto há legitimidade naquela instituição, sistema ou lugar de poder? Porque se não há uma representatividade que alcance os anseios, se não há pessoas que se utilizem do espaço e da sua condição representatividade enquanto mulher negra, indígena ou homem negro, até que ponto se legitimam as políticas que emanam daqueles espaços? Essa é uma discussão que precisa ser feita para que os questionamentos da ausência dessas políticas não incomodem, não sejam uma questão delicada, difícil ou hostil, mas pelo contrário. Quem hoje se propõe a empreender os seus esforços coletivos e institucionais na busca pelo fortalecimento do estado democrático de direito, por igualdade e justiça social, precisa e tem obrigação cidadã de apoiar políticas afirmativas de inclusão como as cotas para negras e negros e paridade de gênero. Essas políticas são imprescindíveis para legitimar esses espaços de poder.

Se ali não há uma representatividade que alcance a formação brasileira, étnica, racial e de gênero, até que ponto há legitimidade naquela instituição, sistema ou lugar de poder?”.

O POVO: A pauta racial sai mais forte de 2020?

Raquel Andrade: Acho que 2020 traz de forma mais intensa o debate sobre racismo. Aqui no Brasil ocorreram fatos marcantes e que trouxeram para o imaginário popular algumas reflexões que são necessárias, reflexões, e críticas individuais, acerca do nosso papel em questões antirracistas; fundamentais na promoção do debate, mas também no avanço por mudanças no cotidiano. Na educação antirracista dos nossos filhos nas escolas, dentro das empresas, dentro dos órgãos públicos e demais espaços promovendo uma reflexão justa e honesta. O ano de 2020 trouxe esse olhar social para a questão antirracista e ai eu chamo a atenção também para a necessidade de engajar pessoas não negras nessas discussões; porque as pessoas brancas ainda ocupam massivamente os espaços de decisão, de domínio de narrativa e de produção de conhecimento. Essas pessoas precisam reconhecer sua condição de privilégio, em função de sua raça e também de seu gênero, para que possam passar a integrar ações e políticas antirracistas para que esse lugar de privilégio se desconstrua e passe a ser um lugar de igualdade. Um lugar sem espaço para uma perspectiva de que a existência branca tem mais valor do que a existência negra.