Sob a Pele: a dupla luta das mulheres negras contra a violência de gênero e raça

Por: Júlia Moura, estagiária de jornalismo da OAB-CE / Coordenação: Rebecca Brasil. 

 

Nos últimos anos, o debate sobre violência de gênero tem ganhado destaque em todo o mundo, mas há uma faceta dessa questão que continua na penumbra: a violência contra a mulher negra no Brasil. Mulheres que enfrentam não só a violência de gênero, mas também racial, resultando em consequências desproporcionais e muitas vezes devastadoras.

Segundo a Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, que é a principal legislação brasileira para combater a violência contra a mulher, os abusos vão muito além da agressão física e do estupro. A norma, que é reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência de gênero, classifica os tipos de abuso contra a mulher nas seguintes categorias: violência patrimonial, violência sexual, violência física, violência moral e violência psicológica.

Patrimonial: Conduta que configure retenção, destruição total ou parcial dos bens das vítimas. Destruir objetos pessoais ou domésticos, reter ou subtrair bens, valores, documentos e instrumentos de trabalho, etc. 

Sexual: Conduta que constranja a vítima a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada. Forçar relação, forçar gravidez, forçar aborto, realizar toques e carícias sem consentimento, ou práticas sexuais indecorosas. 

Física: Conduta que provoca danos físicos Bater, empurrar, puxar cabelo, chutar, jogar objetos, beliscar, morder, queimar, ameaçar com faca e outros meios cortantes, esganaduras, etc.

Moral: Qualquer conduta que configure calúnia, difamação e injúria. Ex: Xingar ou atribuir crimes que não praticou.

Psicológica: Conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que prejudique ou perturbe o pleno desenvolvimento da mulher. Ridicularizar, ameaçar, chantagear, humilhar, isolar e impedir contato com amigos e familiares, vigiar, controlar, privar de liberdade, impedir de trabalhar e estudar, etc.

Para compreender melhor essa situação, conversamos com uma mulher negra sobrevivente da violência que, por razões de segurança e privacidade, preferiu se identificar apenas como A.M.B, mas que compartilhou conosco sua dolorosa experiência. Confira:

 

“Sou uma mulher negra retinta e já passei por diversas situações de  constrangimento, mas não imaginei que sentiria novamente o peso da discriminação nesse momento tão delicado da minha vida.”

A.M.B

“Sofri violência doméstica do meu ex-marido, em 2017, e, na época, fui completamente negligenciada na delegacia. Desde então tenho receio de recorrer ao estado pelo descrédito que eu sofri na época. Chegaram a perguntar se eu tinha certeza da agressão, mesmo com os hematomas visíveis. Tive que ficar afastada do trabalho e com diversas sequelas psicológicas, e quase perdi o emprego porque não tive assistência da empresa também. Voltei a trabalhar pra não perder o emprego, mas ninguém se recupera tão rápido de uma agressão.” 

A.M.B relata sobre as dificuldades que enfrentou ao tentar buscar apoio e denunciar: “As pessoas sempre questionavam se tinha acontecido realmente. Isso me deixava arrasada porque parecia que eu estava inventando tudo. As pessoas, gente do trabalho, os policiais. Era sempre o mesmo questionamento sobre o que aconteceu. Não senti nenhum tipo de acolhimento. Era como se eu tivesse que suportar tudo isso mesmo.”

Além disso, relatou a forma que sua denúncia foi tratada por ser uma mulher negra: “Eu tive que fazer um empréstimo para contratar um advogado para me ajudar a entender todo o processo e acompanhar tudo. O advogado do caso era homem e branco. Foi notória a mudança de comportamento dos mesmos agentes que me atenderam. Quando se é mulher e negra, as coisas são diferentes. As pessoas olham pra gente com desprezo, como se estivessem fazendo um favor em fazer o próprio trabalho. Sou uma mulher negra retinta e já passei por diversas situações de constrangimento, mas não imaginei que sentiria novamente o peso da discriminação nesse momento tão delicado da minha vida. Não desejo o que eu passei a ninguém!”  

Estatísticas alarmantes 

Dados alarmantes revelam que as mulheres negras são frequentemente vítimas de uma variável de violências, desde agressões físicas até feminicídios. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024 da ONU, o número de feminicídios no último ano aumentou no país, chegando a 1.467 vítimas, maior resultado desde a criação da lei que criminaliza esse tipo de violência, instituída em 2015. Ameaças, agressões e stalking também aumentaram consideravelmente, tendo como principais vítimas, mulheres negras somando 66,9% dos casos registrados no país.  

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizados em 2019, revelam ,em comparativo, que mulheres pretas são mais violentadas, seja fisicamente, psicologicamente e sexualmente, numa proporção de 5,7% quanto a violências vivenciadas por mulheres brancas, e de 6,3% por mulheres pretas e pardas. Em números absolutos, uma pesquisa de 2021, também do IBGE, apresenta que fora do domicílio, foram registrados 681 homicídios dolosos de mulheres brancas e 1.835 de pretas ou pardas.

Interseccionalidade 

Um fator fundamental para compreender as desigualdades vivenciadas por essas mulheres é a relação interseccional da violência de gênero atrelada à discriminação racial.

O conceito foi criado em 1989 por Kimberlé Crenshaw, ativista americana de direitos civis e estudiosa da teoria crítica racial, relacionado a interações e marcadores sociais na vida de minorias em sociedade., ao considerar o ambiente vivenciado por uma pessoa, é necessário analisar os aspectos de gênero, orientação sexual, raça, classe. 

A interseccionalidade de gênero, raça e classe social são aspectos de análise da violência contra mulheres negras que enfrentam não apenas o sexismo na sociedade, mas também a discriminação racial sistemática, que intensifica sua vulnerabilidade à violência e limita suas opções de apoio e justiça.

Onde estão as mulheres negras nos cargos de liderança?

No Brasil, as mulheres negras (pretas e pardas) são as que mais sofrem com as desigualdades sociais, seja na educação, no mercado de trabalho, no campo político e até mesmo nas formas de enfrentamento às violências, devido ao passado escravocrata de nosso país.

Essa desigualdade pode ser observada diretamente no mercado de trabalho, segundo o Censo Multissetorial da Gestão Kairós 2022, de um total de 25% de mulheres na liderança, somente 3% são negras. De acordo com os dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a desigualdade racial e de gênero também é enfatizada no setor jurídico, segundo as apurações dos 18.133 mil magistrados do Brasil, 6.914 mil são mulheres, enquanto apenas 780 são mulheres negras. 

Quais as formas de enfrentamento à violência contra a mulher negra? 

No Brasil, além da Lei Maria da Penha, há outras leis que protegem as mulheres vítimas de abusos. Normas que buscam garantir que as mulheres vítimas destes crimes recebam justiça adequada, são elas a Lei do Feminicídio (Lei 13104/2015) e Lei Orgânico dos Direitos Humanos (Lei 12288/2010). 

Além disso, a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Ceará (OAB-CE), comprometida em combater essa realidade por meio da Comissão de Promoção da Igualdade Racial (COPIR-CE) vem trabalhando para promover políticas mais justas e inclusivas.

A advogada e vice-presidente da comissão, Tharrara Rodrigues, destaca o desenvolvimento de uma série de iniciativas, incluindo “campanhas de conscientização, programas de apoio psicológico e jurídico para vítimas, e projetos educativos em escolas e comunidades. Além disso, estamos pressionando por políticas públicas mais eficazes e pela implementação rigorosa das leis existentes”.  

Empenhados em defender e acolher essas mulheres, a comissão segue em uma incessante agenda de atividades, como uma recente visita ao quilombo do Cumbe, localizado no município cearense de Aracati, onde as mesmas participaram de um café da manhã especial, e de uma roda de conversa, liderada por uma profissional de psicologia, abordando temas sobre autocuidado e saúde mental feminina, através de dinâmicas, espaço para escuta e sorteios de brindes. O momento oportunizou trocas, conversas e relatos sobre suas vidas enquanto quilombolas, marisqueiras e resistentes do Cumbe. Confira aqui a matéria completa na íntegra.  

 

Denuncie

Muitas mulheres sofrem em silêncio. Vencer o medo e buscar ajuda não é uma tarefa trivial, mas pode fazer a diferença e contribuir para quebrar o ciclo da violência. Se a vítima rompe o silêncio e denuncia, fica mais fácil reprimir o crime e intensificar o combate à violência contra a mulher.

Canais de atendimento:  

CENTRAL DE ATENDIMENTO À MULHER – 180

POLÍCIA MILITAR – 190

CASA DA MULHER BRASILEIRA – (85) 3108-2992 / 3108-2931 / 3108-2998 / 3108-2999

DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER – DDM – (85) 3108-2950 / 3108-2955 (24h)

MINISTÉRIO PÚBLICO – (85) 3108-2940 / 3108-2941/ 98685-6336

JUIZADOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DE FORTALEZA
1º Juizado: (85)3433-8785 / 3108-2971 (Anexo CMB) / 3108-2978 (Whatsapp)
2º Juizado:(85) 98732-6160

NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER (NUDEM) DA DEFENSORIA PÚBLICA GERAL DO CEARÁ – (85) 3108-2986

CENTROS DE REFERÊNCIA ESTADUAL E MUNICIPAL (ATENDIMENTO PSICOSSOCIAL)
CRMFC – (85) 3108-2965 / 98970-2094
CERAM – (85) 3108-2966

LISTA DELEGACIAS ESPECIALIZADAS DO INTERIOR DE ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER (PACATUBA) – Telefone: (85) 3384-5820

DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER (CAUCAIA) – Telefone: (85) 3101-7926

DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER (MARACANAÚ) – Telefone: (85) 3371-7835 

DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER (CRATO) – Telefone: (88) 3102-1250

DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER (IGUATU) – Telefone: (88) 3581-9454

DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER (JUAZEIRO DO NORTE) – Telefone: (88) 3102-1102

DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER (ICÓ) – Telefone: (88) 3561-5551

DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER (SOBRAL) – Telefone: (88) 3677-4282

DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER (QUIXADÁ) – Telefone: (88) 3412-8082