A Importância das políticas antirracistas no Brasil: cotas, heteroidentificação, leis e ações da OAB-CE
Por: João Victor Barros, estagiário de jornalismo da OAB-CE / Coordenação: Rebecca Brasil.
Apoio: Paulo Vale, presidente da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB-CE
A escravização e a discriminação foram marcas deixadas na população negra as quais são sentidas até hoje. A população negra enfrenta desafios significativos, como a desigualdade de oportunidades no mercado de trabalho, acesso limitado à educação de qualidade e preconceito no cotidiano. No entanto, aos poucos têm sido implementadas medidas para combater o racismo e promover a igualdade racial, trazendo mais esperança e melhorias concretas.
É possível definir o racismo como uma forma de preconceito e discriminação baseada na crença de que certas raças ou etnias são superiores a outras. Essa discriminação pode se manifestar de várias maneiras, incluindo atitudes, comportamentos e políticas que marginalizam ou excluem pessoas com base na cor da pele ou origem étnica.
Uma peça fundamental na proteção dos direitos da população negra é a Lei do Crime Racial (Lei nº 7.716/1989), que define e pune crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Outra importante medida foi a sanção da Lei nº 14.532/2023 que equipara a injúria racial ao crime de racismo, aumentando as penas para reclusão de dois a cinco anos e punindo o racismo recreativo.
Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que o índice de casos denunciados de racismo no Brasil subiu 127% em 2023. Comparado aos 5,1 mil registrados em 2022, foram feitos 11.610 boletins de ocorrência denunciando o crime racial. O Rio Grande do Sul lidera o ranking de estados com mais registros, totalizando 2.857 casos no ano passado.
Contudo, o Brasil possui uma importante ferramenta na luta contra o racismo: a legislação antirracista. A Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012), uma das ações afirmativas, é um marco fundamental que assegura a reserva de vagas para candidatos autodeclarados pretos, pardos, indígenas e quilombolas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e quilombolas e de pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Outra importante medida que complementa essa Lei é a Resolução nº 541/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que define o procedimento de heteroidentificação como a identificação por terceiros da condição racial autodeclarada. Esse procedimento complementa a autodeclaração dos(as) candidatos(as) negros(as) que desejam concorrer às vagas reservadas no âmbito do Poder Judiciário, incluindo o ingresso na magistratura e a outorga das delegações de notas e de registro, conforme os critérios de raça e cor utilizados pelo IBGE.
No Ceará, a resolução vem sendo cumprida por meio da criação de comissões, como a Comissão Recursal de Heteroidentificação do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (CRH/TJCE) e a Comissão de Heteroidentificação do TJCE. Atualmente, apenas o TJCE possui uma banca própria para a análise dos candidatos. Já no Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região (TRT7) e na Justiça Federal do Ceará (JFCE), embora o também seja realizado, esses órgãos não possuem bancas próprias, optando pela contratação de profissionais para conduzir o processo.
Ao ser indagado sobre a importância do procedimento de heteroidentificação para a promoção da equidade racial no Judiciário, o juiz e presidente da Comissão de Heteroidentificação do TJCE, Juraci de Souza Santos Junior, afirmou que o processo faz parte de um propósito maior, que é desfazer a assimetria da composição do judiciário no aspecto racial, de modo a corresponder à população geral, ou seja, à grande maioria da população, que é efetivamente negra. “A Comissão vai observar e avaliar a pessoa, levando em conta seus traços fenotípicos, ou seja, a aparência da pessoa, e verificar se há uma adequação ao que a comunidade em geral entende como sendo uma pessoa negra e, portanto, potencial beneficiária dessa política pública. O Judiciário, ao aplicar essa política pública, busca ser um local de reprodução dessa medida que visa desfazer o descompasso histórico entre o que é a população majoritariamente negra e aqueles que, usualmente, ocupam os espaços de decisão e poder, como é o caso do Judiciário”, pontuou.
Outro importante órgão que desempenha um papel crucial na promoção da igualdade racial e de gênero é o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), que estabeleceu, através do Provimento Nº 222/2023 a aplicação imediata de uma cota racial de 30% nas eleições para advogados negros e advogadas negras. A proposta ocorreu em dezembro de 2020, pelo então Conselheiro Federal da OAB pela bancada do Ceará, hoje Desembargador e Presidente da Comissão Recursal de Heteroidentificação e da Comissão de Políticas Judiciárias de Promoção da Igualdade Racial, André Costa. Essa medida, válida por 30 anos, visou aumentar a representatividade negra em todos os órgãos da OAB, incluindo o Conselho Federal, Conselhos Estaduais, Subseções e Caixas de Assistência da Advocacia.
A presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Ceará (OAB-CE) na gestão 2025/2027, Christiane do Vale Leitão, destacou a importância dessa decisão para a promoção da democracia e da representatividade dentro da instituição. “Considero extremamente importante a participação de advogados(as) negros(as) nas direções da OAB e em todas as esferas. Desde o início da nossa gestão temos nos pautado pela democracia, representatividade e paridade de gênero. Criamos a Comissão de Promoção da Igualdade Racial e, além disso, na Escola Superior de Advocacia, o braço educacional da Ordem, também publicamos uma portaria conjunta (01/2020) que determina um contingente mínimo de 50% de mulheres para ocuparem função de palestrantes, facilitadoras, mediadoras e professoras em eventos promovidos pela ESA-CE”, afirmou.
Criada em 2020, a Comissão da Promoção da Igualdade Racial (COPIR-CE) da OAB-CE vem desempenhando um importante papel na luta antirracista frente à classe de advogados e à sociedade. Tendo como presidente o advogado Paulo Vale, a Comissão organizou, em julho de 2024, em conjunto com a assessoria de comunicação da Ordem cearense, a campanha de combate à discriminação racial “A Cor da Justiça”, visando reafirmar um importante papel na luta antirracista frente à classe de advogados e à sociedade.
A abordagem do letramento racial é importante para a desconstrução do racismo estrutural e institucional. O termo remete à racialização de relações em sociedade, estabelecendo direitos e posições hierárquicas arbitrárias para brancos e não-brancos, legitimando uma pretensa supremacia branca. O presidente Paulo Vale afirma que “o letramento racial deveria ser ampliado, falando em toda a sociedade geral. Mas, dentro do Judiciário, poderíamos ter formações para os magistrados, principalmente para os magistrados que estão entrando, com pautas voltadas a isso. Então, o Judiciário poderia contribuir com cursos de formação para os seus magistrados e, digo, que para todos os servidores deveria existir”.
O protagonismo da COPIR na pauta racial proporcionou a nomeação do presidente e da vice-presidente da Comissão da OAB-CE, Paulo Vale e Tharrara Rodrigues, respectivamente, nos cargos de membros da 1ª Comissão de Heteroidentificação criada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, assegurando a política de cotas nos concursos públicos para magistratura e nos vestibulares.
“É importantíssimo ter dois representantes nessas condições. Primeiro, nesse momento em que vivemos, nós vemos que o judiciário tem poucos representantes negros como magistrados, que gira em torno de 13%, então nós termos representantes lá, é fazer valer a política afirmativa de cotas, vermos que possivelmente teremos juízes negros e que iremos ter representatividade dentro dos órgãos de poder. Então, essa participação é essencial”, destacou Paulo Vale.
Ações da comissão
A Comissão da Promoção da Igualdade Racial (COPIR-CE) vem promovendo diversas campanhas antirracistas e eventos educativos, como debates, seminários e rodas de conversa, abordando temas como branquitude, identidade racial e as implicações da mestiçagem no Brasil. Esses eventos não apenas proporcionam um espaço para reflexão e diálogo, mas também servem como ferramentas educativas para a desconstrução de preconceitos e a promoção de uma sociedade mais inclusiva e igualitária.
Por meio dessas iniciativas, a Comissão mostra seu compromisso com a transformação das relações raciais e a promoção da igualdade de direitos para todos os cidadãos, contribuindo para uma justiça mais equitativa e uma sociedade mais consciente e informada sobre as questões raciais.
Além disso, a COPIR-CE tem assento no Conselho Estadual de Igualdade Racial do Ceará e no Conselho Municipal da cidade de Fortaleza, desenvolvendo, conjuntamente, ações e políticas públicas que assegurem condições de igualdade à população negra e quilombola.
E com a intenção de atingir diretamente a comunidade, a comissão também promoveu uma ação coletiva no quilombo do Cumbe, localizado em Aracati-CE, focada no bem-estar e na visibilidade das mulheres quilombolas, discutindo temas como saúde, autoestima e pertencimento. Além disso, já conduziu inúmeros debates sobre o papel da mulher negra na construção dos direitos humanos, a importância da participação do povo negro na política, no contexto eleitoral e no mercado de trabalho, bem como discussões referentes à segurança pública e à violência doméstica contra as mulheres negras.
Embora ainda haja um longo caminho a percorrer, os avanços alcançados demonstram que é possível construir uma sociedade mais justa e igualitária. A luta contra o racismo é contínua, mas com a implementação de políticas eficazes e a conscientização da sociedade, o caminho para a igualdade tende a ficar mais acessível.