Em seu célebre Strafrecht Allgemeiner Teil (Band I), CLAUS ROXIN já pontuara, com inequívoco acerto, que, nos Estados Democráticos de Direito, nem tudo pode ser criminalizado, ao inteiro alvedrio do legislador. Bem ao contrário, o legislador ordinário deve se ater ao programa penal da Constituição que o subordina; e, de um modo geral, as constituições democráticas não admitem (a) cominações penais arbitrárias; (b) tipificações penais com finalidades puramente ideológicas; (c) tipificações penais de meras imoralidades; e (d) preceitos penais que criam ou asseguram desigualdade entre seres humanos.

Com relação àquela primeira restrição ─ a das cominações penais arbitrárias ─, ROXIN exemplifica a hipótese com passagem lendária extraída da tradição germânica. Conta-se que certo governador austríaco designado para as terras suíças, de prenome Greßer, incomodou-se com o fato de que os cidadãos suíços não tinham por ele grande estima, nem lhe prestavam reverências (o que, convenha-se, era o óbvio a se esperar). Para mudar esse estado de coisas ─ ou ao menos para agredir quem supostamente o agredia ─, Greßer determinou que se colocasse em exibição pública, na praça central da cidade-sede, o seu próprio chapéu, representativo da sua pessoa; e, por meio de ato normativo geral, determinou que todos os cidadãos reverenciassem o chapéu, quando passassem diante dele, sob pena de responsabilização criminal.

Eis um exemplo feliz dos usos mais infelizes do Direito Penal. Ilustra bem como a legislação penal pode ser utilizada para finalidades puramente simbólico-políticas, afastando-se do genuíno Direito Penal de feitio liberal, legatário das lições de BECCARIA e caudatário das reflexões de FERRAJOLI. Longe de tutelar, como “ultima ratio”, bens jurídicos constitucionais em regime de estrita fragmentariedade, tais disposições antes servem para gerar mais controvérsias e, não raro, para instilar conflitos interssubjetivos onde originalmente não existiam.

Em escala mais perigosa, algo similar talvez se passe no Brasil, em pleno século XXI.

Está em vias de ser votado, no plenário da Câmara dos Deputados Federais, o PL n.  8.347/2017, que ─ após longo esforço institucional da Ordem dos Advogados do Brasil ─  criminalizará, finalmente, a assim denominada “violação das prerrogativas da advocacia”. Com efeito, na última terça-feira (5/12/2017), a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a referida criminalização, a partir do relatório elaborado pelo deputado Wadih Damous (PT-RJ), ex-presidente da seccional fluminense da Ordem. O projeto agora seguirá para discussão e deliberação no plenário da Casa. Se não houver alterações de texto ─ como quer a OAB ─, sequer retornará ao Senado da República.

E o que isto significa, caro leitor? Especialmente para o nosso dia-a-dia? E, no que me diz respeito mais de perto, o que isto significa para a Justiça do Trabalho?

Vejamos (e tentarei ver, como de hábito, da maneira menos apaixonada possível).

Com a aprovação do PL n. 8.347/2017, se sancionado pelo Presidente da República, a Lei n. 8.906/1998 (Estatuto da Advocacia) passará a prever, textualmente, o seguinte:

“Violação de direitos ou prerrogativas do advogado

“Art. 43-A. Violar direito ou prerrogativa do advogado, relacionada nos incisos I, II, III, IV, V, XIII, XV, XVI ou XXI do art. 7º.

“Pena – detenção, de um a quatro anos.

“§1º As penas serão aumentadas de um sexto a dois terços, se o agente público praticar ato atentatório à integridade física ou à liberdade do profissional de que trata o artigo.

“§2º Nos casos de condução ou prisão arbitrária, sem prejuízo do disposto no §1º, o agente público ainda ficará sujeito à perda do cargo e à inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública pelo prazo de até 3 (três) anos.

“§3º Não constitui crime a decisão judicial que determine a prisão em flagrante ou provisória do advogado, ainda que modificada por instância superior, desde que proferida nos termos da lei.

“§4º A Ordem dos Advogados do Brasil, por intermédio do Conselho Federal, em qualquer situação, e de Conselho Seccional, no âmbito de sua atribuição regional, poderá solicitar à autoridade com atribuição para investigação, instauração de persecução penal por crime de que trata este artigo, bem como diligências em fase investigativa, requerer a 98sua admissão como assistente do Ministério Público, em qualquer fase da persecução penal, bem como intentar ação penal de iniciativa privada subsidiária nos termos dos Códigos Penal e de Processo Penal.

“§6º O juiz, recebendo promoção de arquivamento de persecução penal relativa a crime tratado neste artigo, antes de sobre ela decidir, intimará a Ordem dos Advogados do Brasil, por intermédio de seu Conselho Seccional, em qualquer hipótese, ou do Conselho Federal, no caso de persecução penal relativa a fato ocorrido perante tribunal federal com competência territorial que abranja mais de um Estado da federação, para que se manifeste no prazo de cinco dias, nos termos do art. 28 do Código de Processo Penal.

“Exercício ilegal da advocacia

“Art. 43-B. Exercer ou anunciar que exerce, ainda que a título gratuito, qualquer modalidade de advocacia, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício, ou sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites:

“Pena – detenção, de seis meses a dois anos.

“§1º Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se cumulativamente multa.

“§2º Incorre nas mesmas penas quem exerce função, atividade, direito, autoridade ou múnus de que foi suspenso ou privado por decisão administrativa ou judicial.”

Mas o que diz, afinal, o artigo 7º do Estatuto da Advocacia? Diz o seguinte ─ e os incisos abaixo negritados correspondem àqueles que, tisnados por alguém, poderão originar essa “nova” responsabilidade criminal ─, na sua inteireza:

“Art. 7º. São direitos do advogado:

“I – exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional;

“II – a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia; (Redação dada pela Lei nº 11.767, de 2008)

“III – comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis;

“IV – ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB;

“V – não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas, assim reconhecidas pela OAB, e, na sua falta, em prisão domiciliar;

“VI – ingressar livremente:

“a) nas salas de sessões dos tribunais, mesmo além dos cancelos que separam a parte reservada aos magistrados;

“b) nas salas e dependências de audiências, secretarias, cartórios, ofícios de justiça, serviços notariais e de registro, e, no caso de delegacias e prisões, mesmo fora da hora de expediente e independentemente da presença de seus titulares;

“c) em qualquer edifício ou recinto em que funcione repartição judicial ou outro serviço público onde o advogado deva praticar ato ou colher prova ou informação útil ao exercício da atividade profissional, dentro do expediente ou fora dele, e ser atendido, desde que se ache presente qualquer servidor ou empregado;

“d) em qualquer assembleia ou reunião de que participe ou possa participar o seu cliente, ou perante a qual este deva comparecer, desde que munido de poderes especiais;

“VII – permanecer sentado ou em pé e retirar-se de quaisquer locais indicados no inciso anterior, independentemente de licença;

“VIII – dirigir-se diretamente aos magistrados nas salas e gabinetes de trabalho, independentemente de horário previamente marcado ou outra condição, observando-se a ordem de chegada;

“IX – sustentar oralmente as razões de qualquer recurso ou processo, nas sessões de julgamento, após o voto do relator, em instância judicial ou administrativa, pelo prazo de quinze minutos, salvo se prazo maior for concedido;

“X – usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento, bem como para replicar acusação ou censura que lhe forem feitas;

“XI – reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento;

“XII – falar, sentado ou em pé, em juízo, tribunal ou órgão de deliberação coletiva da Administração Pública ou do Poder Legislativo;

“XIII – examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estejam sujeitos a sigilo, assegurada a obtenção de cópias, podendo tomar apontamentos;

“XIV – examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos;

“XIV – examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer  natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital;

“XV – ter vista dos processos judiciais ou administrativos de qualquer natureza, em cartório ou na repartição competente, ou retirá-los pelos prazos legais;

“XVI – retirar autos de processos findos, mesmo sem procuração, pelo prazo de dez dias;

“XVII – ser publicamente desagravado, quando ofendido no exercício da profissão ou em razão dela;

“XVIII – usar os símbolos privativos da profissão de advogado;

“XIX – recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional;

“XX – retirar-se do recinto onde se encontre aguardando pregão para ato judicial, após trinta minutos do horário designado e ao qual ainda não tenha comparecido a autoridade que deva presidir a ele, mediante comunicação protocolizada em juízo.

“XXI – assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração:

“a) apresentar razões e quesitos;

“b) (VETADO).

“§ 1º Não se aplica o disposto nos incisos XV e XVI:

“1) aos processos sob regime de segredo de justiça;

“2) quando existirem nos autos documentos originais de difícil restauração ou ocorrer circunstância relevante que justifique a permanência dos autos no cartório, secretaria ou repartição, reconhecida pela autoridade em despacho motivado, proferido de ofício, mediante representação ou a requerimento da parte interessada;

“3) até o encerramento do processo, ao advogado que houver deixado de devolver os respectivos autos no prazo legal, e só o fizer depois de intimado.

“§2º O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer.

“§3º O advogado somente poderá ser preso em flagrante, por motivo de exercício da profissão, em caso de crime inafiançável, observado o disposto no inciso IV deste artigo.

“§4º O Poder Judiciário e o Poder Executivo devem instalar, em todos os juizados, fóruns, tribunais, delegacias de polícia e presídios, salas especiais permanentes para os advogados, com uso e controle assegurados à OAB.

“§5º No caso de ofensa a inscrito na OAB, no exercício da profissão ou de cargo ou função de órgão da OAB, o conselho competente deve promover o desagravo público do ofendido, sem prejuízo da responsabilidade criminal em que incorrer o infrator.

“§6º  Presentes indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado, a autoridade judiciária competente poderá decretar a quebra da inviolabilidade de que trata o inciso II do caput deste artigo, em decisão motivada, expedindo mandado de busca e apreensão, específico e pormenorizado, a ser cumprido na presença de representante da OAB, sendo, em qualquer hipótese, vedada a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do advogado averiguado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes.

“§7º A ressalva constante do §6º deste artigo não se estende a clientes do advogado averiguado que estejam sendo formalmente investigados como seus partícipes ou co-autores pela prática do mesmo crime que deu causa à quebra da inviolabilidade.

§ 8º (VETADO)

§ 9º (VETADO)

“§10. Nos autos sujeitos a sigilo, deve o advogado apresentar procuração para o exercício dos direitos de que trata o inciso XIV.

“§ 11.  No caso previsto no inciso XIV, a autoridade competente poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências.

“§12. A inobservância aos direitos estabelecidos no inciso XIV, o fornecimento incompleto de autos ou o fornecimento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo implicará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável que impedir o acesso do advogado com o intuito de prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente.

Pois bem.

Quatro argumentos convencem-nos da inconveniência e, mais, da provável inconstitucionalidade da referida criminalização. Vejamos.

Há, a uma, o aspecto político-criminal da novidade.

Os nossos tempos são tempos de Direito Penal mínimo, notadamente porque o sistema penal contemporâneo revelou-se gravemente ineficaz em relação a seus escopos primeiros (tutela de bens jurídicos de máxima relevância e pacificação social). Disse-o, com muita felicidade, o grande ALESSANDRO BARATTA, com o traço humanista que lhe era peculiar[1]. Nessa linha, a política de criminalização generalizada de condutas é corretamente repudiada pelas ciências criminais contemporâneas. Com efeito, se as normas de direito “não-penal” bem resolvem o contexto de conflito, com amplo amparo civil, processual e administrativo (para isso, no particular, as corregedorias dos tribunais, das polícias civis e militares e do Ministério Público), não há porque o Estado adotar medidas extremas, tornando “criminosa” toda violação de direito, ainda que se apresente. O Direito Penal deve ser reservado para as condutas ilícitas mais graves do meio social, i.e., aquelas que trazem em si afetações qualificadas aos bens jurídicos de máxima relevância jurídico-constitucional (o que, veremos, não se dá “in casu”).

Ademais, a própria legislação penal já trata adequadamente dessas hipóteses. Assim, por exemplo, para o caso de o parlamentar, o magistrado, o membro do Ministério Público ou o policial ordenar ou executar medida privativa de liberdade em desconformidade com a lei ou com abuso de poder, terá praticando, em tese, o crime de exercício arbitrário ou abuso de poder, sujeitando-se às penas do artigo 350, caput, do Código Penal (detenção, de um mês a um ano). Vale para todas as ordens de prisão ilegais dimanadas e/ou executadas contra advogados ou qualquer do povo. Quanto às buscas e apreensões em escritórios de advocacia, já há, do mesmo modo, tutela penal: a conduta de efetuar, com abuso de poder, qualquer diligência (inclusive as judiciais) já está prevista na lei penal brasileira, como tipo penal equiparado ao do crime de exercício arbitrário ou abuso de poder (artigo 350, par. único, IV, do CP), com as mesmas penas a ele cominadas.

E não é só. Se a autoridade judiciária, ministerial ou policial for ainda além, praticando violência em detrimento de advogado ou qualquer do povo, responderá pelo crime de violência arbitrária (“no exercício da função ou a pretexto de exercê-la”), nos precisos termos do artigo 322 do CP, com penas que vão de seis meses a três anos de detenção, também sem prejuízo da pena correspondente à violência.

Por fim, ainda que assim não fosse, segue em vigor a Lei n. 4.898/1965, que “regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa civil e penal, nos casos de abuso de autoridade”. Lê-se ali, entre outras coisas, que são condutas criminosas, punidas com detenção de dez dias a seis meses, as seguintes (atente-se para os grifos):
“Artigo 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:

a) à liberdade de locomoção;

b) à inviolabilidade do domicílio;

c) ao sigilo da correspondência;

d) à liberdade de consciência e de crença;

e) ao livre exercício do culto religioso;

f) à liberdade de associação;

g) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto;

h) ao direito de reunião;

i) à incolumidade física do indivíduo;

j) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional”. (incluído pela Lei n. 6.657,de 5.6.79)

“Artigo 4º. Constitui também abuso de autoridade:

a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;

b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei;

c) deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa;

d) deixar o Juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada;

e) levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei;

f) cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao seu valor;

g) recusar o carcereiro ou agente de autoridade policial recibo de importância recebida a título de carceragem, custas, emolumentos ou de qualquer outra despesa;

h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal;

i) prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade”. (incluído pela Lei n. 7.960, de 21.12.1989)

Aí estão distribuídas praticamente todas as condutas contra as quais quer se insurgir a Ordem dos Advogados do Brasil, ao patrocinar a aprovação do PL n. 8.347/2017. Ressalte-se, em especial, a alínea “j” do artigo 3º, que foi inserida em 1979 por gestões da própria OAB e que serve justamente à prevenção e repressão das condutas de autoridades que violam, concretamente, os direitos e as garantias legais profissionais que, no caso da advocacia, dimanam hoje da Lei n. 8.906/94, “in totum” (e não apenas de seu artigo 7º). Mesmo essa previsão, pela sua abertura, já seria de constitucionalidade duvidosa; mas, para o bem ou para o mal, a norma já existe e tecnicamente está em vigor, sem qualquer declaração judicial de inconstitucionalidade ou de não-recepção que seja vinculante “erga omnes”. Logo, a “nova” norma ― que, no fundo, vai simplesmente repositivar toda essa matéria, de modo ainda mais genérico e pantanoso, nos lindes da mais gritante inconstitucionalidade ― não tem qualquer razão de ser, social ou politicamente. A tutela penal das “prerrogativas profissionais” já existe (e para todos, como deve ser; não apenas para advogados). Basta fazê-la valer, “si et quando” necessária.

Mas não é só.

A duas, a inconveniência da novidade deve-se à própria tessitura do novel art. 43-A, que agride a taxatividade penal e veicula indesejável norma penal em branco.

Com efeito, a própria remissão aos incisos do artigo 7º do Estatuto da Advocacia já é infeliz, perfazendo norma penal em branco que, bem se sabe, sempre mereceu a crítica dos autores clássicos (J. FREDERICO MARQUES à frente), como também dos garantistas (L. FERRAJOLI à frente). O art. 7º possui preceitos tão genéricos quanto “exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional” (inciso I), ou tão anódinas como “permanecer sentado ou em pé e retirar-se de quaisquer locais indicados no inciso anterior” (inciso VII, reportando-se às salas de sessões, audiências, cartórios, etc. ─ esse retirado, em boa hora, da redação do projeto).

A rigor e em tese, mesmo com a redação mais “enxuta” que veio do Senado da República (pelo voto da Senadora Simone Tebet, em tudo ratificado pelo relator do projeto na CCJ da Câmara, o Deputado Wadih Damous), ainda poderiam configurar o novo crime condutas tão isentas e corriqueiras como o bloqueio temporário de passagem de um advogado em blitz policial de rotina (porque, afinal, estará sendo impedido de exercer “com liberdade” a sua profissão, se p. ex. estiver se dirigindo a uma audiência); ou a indisponibilidade de autos físicos de processo, por estarem conclusos com o juiz, muitas vezes fora das dependências da unidade judiciária (por violação do inciso XIII do art. 7º, do Estatuto); ou se tardar ou falhar a remessa de um simples ofício à seccional local da OAB (por violação da parte final do inciso IV do art. 7º do Estatuto); ou, ainda, se certo advogado for recolhido preso em dependências que não tenham sido “reconhecidas” como condignas por nenhuma representação da OAB (por violação do inciso V do art. 7º do Estatuto).

Iniludível, afinal, que a imensidão da abrangência do tipo penal segue inadequada; e deverá gerar, “per se”, intensa insegurança jurídica, além da inibição de atuação dos agentes do Estado, ainda que dentro do espaço legal e constitucional de sua atuação. E disso resulta, em variegadas hipóteses que se podem conjecturar, possíveis cerceamentos à própria liberdade de condução do processo que é assegurada aos juízes, a teor dos artigos 139 e 360 do CPC, ou aos próprios parlamentares, nos ensejos do artigo 58, §3º, da CRFB. Assim, p. ex., entrever-se-ia crime na mais banal discussão sobre o acesso do advogado a autos de processo não disponíveis em secretaria, ou ainda ― e inclusive ― em decorrência de interpretações quanto à participação do advogado em Comissões Parlamentares de Inquérito, não só quanto ao direito de acompanhar as diversas fases, mas também quanto à oportunidade de assento e voz.

O que se pretende demonstrar com tal casuística hipotética, caro leitor, é que o tipo penal prestes a ser sufragado pelo Parlamento segue genérico e, por isso, a amiúde impraticável, além de proteger inexplicavelmente os direitos de uma dada profissão liberal, que passa a merecer tratamento jurídico distinto e dispor de proteção penal especial, em detrimento de todas as outras similares. Por tudo isto, nos seus atuais moldes, a previsão é, a uma, de duvidosa constitucionalidade; e, a duas, decerto inconveniente, do ponto de vista político-legislativo.

Digamos algo sobre os parâmetros de constitucionalidade.

O inciso XXXIX do art. 5o. da CRFB/1988 consagra a garantia fundamental e o princípio universal da reserva legal, ao determinar que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Como corolário deste princípio, chega-se ao subprincípio da máxima taxatividade penal, pelo qual estão vedados, constitucionalmente, tipos penais excessivamente abertos e genéricos. Na dicção de Paulo de SOUZA QUEIROZ[2],

“[o] princípio da reserva legal implica a máxima determinação e taxatividade dos tipos penais, impondo-se ao Poder Legislativo, na elaboração das leis, que redija tipos penais com a máxima precisão de seus elementos, bem como ao judiciário que as interprete restritivamente, de modo a preservar a efetividade do princípio” (g. n.).

Da mesma maneira, já há quase duas décadas ZAFFARONI e BATISTA[3] advertiam que

“…não basta que a criminalização primária se formalize em uma lei, mas sim que ela seja feita de uma maneira taxativa e com a maior precisão técnica possível, conforme ao princípio da máxima taxatividade…” (g.n.).

Vejam-se, ademais, as lições do espanhol RODRIGUEZ-ARIAS, para quem o princípio da reserva legal não é ferido, em tese e princípio, pela norma penal em branco, porque a legalidade penal, ainda se qualificada de absoluta, não pode ser entendida em termos tão estritos que obstem às disposições jurídicas de categoria inferior o papel de complementar a lei penal. Do contrário, haveria de se conferir à norma penal, que deve ser clara por excelência, um nível de complexidade absolutamente impróprio nas matérias mais técnicas, com prejuízo para a segurança jurídica. Mas a questão que se põe é, sempre, a dos limites da delegação normativa: há que se fixar os limites de admissibilidade da remissão ou reenvio, para que não se promova uma autêntica deslegalização (“deslegalización”) de matérias reservadas ao império da lei, o que ─ dizemos nós ─ poderá se dar pela excessiva remissão à normativa administrativa, como ainda pela excessiva abertura à interpretação “construtiva” do juiz criminal. Assim, o mecanismo de reenvio normativo ―como ocorre nos delitos de tráfico de drogas e outros similares ― deve cumprir um papel exclusivamente técnico, de enunciação e atualização dos fatos que a lei indica como merecedores de sanção pelo desvalor que encerra[4]. A não ser assim, a tipificação carece de determinação e se presta a arbitrariedades, alijando do tipo penal o seu escopo de clareza e a sua função de certeza[5]. É precisamente o caso em comento.

Com efeito, a garantia de que não haverá crime ou pena sem lei anterior que os defina restaria absolutamente inócua se fosse admitida a tipificação genérica de quaisquer condutas, ao bel-prazer do legislador. A título de exemplo, tecnicamente não são criminalizáveis condutas genéricas como “mau procedimento” (vide art. 482 da CLT), “falta de urbanidade” (Lei n. 8.112/90) ou ― como já se fez o Brasil, ao tempo do antigo Código de Pesca ― “molestamento de cetáceos” (tipo penal que, por isso mesmo, jamais foi aplicado pelo Poder Judiciário brasileiro). Na mesma linha, não se podem criminalizar condutas genéricas e desprovidas de conteúdo seguro como, p.ex., “violar o livre exercício da profissão da advocacia em todo o território nacional”, ou “violar a assistência de clientes investigados durante a apuração das respectivas infrações”. O que, afinal, a norma penal está a proibir? Uma gama incalculável de condutas comissivas e omissivas poderiam se subsumir a essas descrições… E esses são apenas dois exemplos dentre aqueles que, justamente, configurariam o novel crime de “violação de direitos e prerrogativas de advogado”, caso aprovado o PL n. 8.347/2017.

Poder-se-ia reduzir essa perigosa amplitude semântica, se se inserisse, no caput do preceito, um elemento subjetivo especial do injusto (ou, na expressão da doutrina mais antiga, o “dolo específico”). A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) propôs tal alteração, sugerindo que, na cabeça do novel artigo 43-A, fosse inserida a locução “com o fim de prejudicar o livre exercício da advocacia”. Sugeriu, da mesma maneira, que se incluísse, na sequência do artigo, parágrafo a prever que “[a] aplicação do presente artigo não prejudicará as garantias e prerrogativas da Magistratura e do Ministério Público, nem seus poderes processuais regularmente exercidos”. Tal parágrafo prestar-se-ia sobretudo a aclarar, na espécie, o universo axiológico de contrastes; e, por conseguinte, a prevenir quadros de excessiva litigiosidade que o novo tipo penal deve carrear às audiências judiciais (mesmo porque, como se sabe, a “coluna vertebral” do processo trabalhista é a sua audiência, onde juízes, partes, advogados, testemunhas e peritos interagem diuturnamente, desde a primeira tentativa obrigatória de conciliação até as razões finais orais, se não até a própria sentença prolatada em audiência). No entanto, tais propostas não obtiveram o aval prévio do Conselho Federal da OAB e, por conseguinte, tanto foram recusadas pela Senadora Simone Tebet, como pelo Deputado Wadih Damous, relatores em suas respectivas casas. Bom seria, para a segurança jurídica vindoura e para a serenidade das mesas de audiência, que, ao menos no plenário do Senado, as alterações fossem encampadas. O tempo dirá.

Por outro lado, e a três, convém dedicar alguma reflexão ao problema da sujeição do legislador ordinário ao programa penal da Constituição, como anotamos acima. E também aqui há bons reparos a se fazer (inclusive com maior gravidade). Lembra-se do episódio do chapéu de Greßer?

O Direito Penal universal deve ter natureza fragmentária. Isso é mais verdadeiro quanto se vive sob a égide de um Estado Democrático de Direito, como é o caso. Significa, em poucas palavras, que o legislador infraconstitucional não pode, ao seu talante, “decidir” o que deva ou não ser criminalizado no Brasil. Não poderia, p.ex., “criminalizar” a conduta consistente em se praticar tal ou qual ato libidinoso, se não lesivo à integridade física ou mental dos parceiros, desde que sejam maiores e capazes e deliberem consensualmente praticá-lo (= não punir meras imoralidades). Tampouco poderia “criminalizar” o mero ato de pertencer a tal ou qual torcida uniformizada, ou a tal ou qual religião (mesmo que não sejam exatamente cristãs, abrâmicas ou sequer “convencionais”). Isso porque todos esses aspectos, se têm relevância na perspectiva moral, cultural ou ético-social, são irrelevantes do ponto de vista constitucional, à mercê dos direitos e das liberdades asseguradas pela Carta de 1988.

Dito de outro modo, há um programa penal ínsito à Constituição da República Federativa do Brasil, ao qual deve se ater o legislador penal ordinário. Nem todas as condutas sociais são passíveis de criminalização, nem estão ao inteiro talante do legislador; a Constituição traça, a respeito, limites mais ou menos claros, que restringem o poder de conformação legislativa dos parlamentares da União (art. 22, I, CRFB). Só se podem criminalizar condutas que lesem ou ameacem de lesão bens jurídicos com estrito status constitucional (vida, honra, liberdade, propriedade, segurança coletiva, probidade administrativa, etc.); outros aspectos, sem explícita dimensão tuitivo-constitucional (como, p.ex., orientações sexuais, religiosas ou político-ideológicas, tradições culturais, regras estéticas ou de etiqueta, obrigações civis de dimensão puramente patrimonial, meras prerrogativas profissionais etc.), não admitem criminalização em tese.

Nesse diapasão, lê-se, no mesmo CLAUS ROXIN (supra), que

“[e]l punto de partida correcto consiste en reconocer que la única restricción previamente dada para el legislador se encuentra en los principios de la Constitución. Por tanto, un concepto de bien jurídico vinculante políticocriminalmente sólo se puede derivar de los cometidos, plasmados en la Ley Fundamental, de nuestro Estado de Derecho basado en la libertad del individuo, a través de los cuales se le marcan sus límites a la potestad punitiva del Estado. Em consecuencia se puede decir: los bienes jurídicos son circunstancias dadas o finalidades que son útiles para el individuo y su libre desarrollo en el marco de un sistema social global estructurado sobre la base de esa concepción de los fines o para el funcionamiento del propio sistema. […] De tal concepto de bien jurídico, que le viene previamente dado al legislador penal, pero no es previo a la Constitución, se pueden derivar una serie de tesis concretas”.[6]

ROXIN segue então apresentando as teses concretas derivadas da estrita vinculação do bem jurídico-penal face à Constituição, pontuando aquilo que não pode ser objeto do Direito Penal, por implícita vedação constitucional. Referimos, no inicio, tais hipóteses: as cominações penais arbitrárias (como, e.g., exigir que os cidadãos tributem reverência a um símbolo qualquer), as meras imoralidades (como, e.g., práticas sexuais atípicas, desde que inofensivas para os parceiros e consentidas entre pessoas maiores, livres e capazes), as finalidades puramente ideológicas (como se deu, p.ex., na Alemanha nazista, com leis penais e correlatas destinadas a tutelar a “manutenção da pureza do sangue alemão”) e os preceitos penais que criam ou asseguraram desigualdades entre iguais (como se deu, p.ex., na África do Sul, com leis penais e correlatadas destinadas a assegurar os princípios segregacionistas do apartheid).[7]

Nessa precisa linha, pode-se reconhecer a inconstitucionalidade do PL n. 8.347/2017 ao menos por dois motivos:

(i) criminalizar-se-á, a rigor, onde não se pode criminalizar, porque as prerrogativas gerais dos advogados ― à diferença das prerrogativas judicias (artigo 95 da CRFB) ― não tem “status” constitucional expresso, à exceção da inviolabilidade por atos e manifestações no exercício da profissão (i.e., um aspecto muito específico do rol geral de prerrogativas legais, que sequer está relacionada nos incisos do artigo 7º ─ aos quais remeterá o futuro art. 43-A ─, mas no seu parágrafo 2º, já dados, aí, os “limites da lei ordinária”, como dispõe o artigo 133 da CRFB);

(ii) criar-se-á preceito penal que, na dicção do ROXIN, assegura, em alguma escala, a desigualdade entre iguais, já que não existirão “crimes de violação de prerrogativas profissionais” para outras tantas categorias de profissionais liberais, como médicos, engenheiros, contadores etc. (e que, não raro, têm também direitos ou “prerrogativas” de várias espécies; assim, e.g., a do médico, enquanto testemunha, em silenciar quanto ao estado de saúde de seus pacientes ― artigo 207 do CPP ―, ou a de não servir no tribunal do júri em caso de necessidade de dispensa ― artigo 436, par. único, XI, “a”, 1ª parte, do CPP).

Com efeito, até por uma questão de isonomia (artigo 5º, caput, da CRFB), a criminalização das condutas violadoras de prerrogativas profissionais de advogados renderá ensejo a que, no futuro próximo, todas as outras profissões que, em alguma circunstância, detenham direitos especiais ou “prerrogativas”, venham a reclamar, no Congresso Nacional, a aprovação de leis disciplinando os respectivos crimes de violação. Isso para não falar das prerrogativas republicanas, ínsitas aos membros da Magistratura e do Ministério Público, que detêm inclusive assento constitucional e, todavia, não são objeto de norma penal específica. Tudo a demonstrar que, no programa penal da Constituição de 1988, os direitos e prerrogativas profissionais liberais não admitem tutela penal estrita, por opção sistemática do legislador constituinte.

Doutro turno, e a quatro, é notório que o ordenamento jurídico estabelece imunidades no exercício profissional a diversos responsáveis pela administração da Justiça, dentre outros. O novel art. 43-A do Estatuto da Advocacia trará conflitos, no particular, e poderá render ensejo a verdadeiro crime de hermenêutica. Se não, vejamos.

Todos os agentes públicos envolvidos com a aplicação da Justiça têm, pela própria natureza de suas atribuições, imunidades no exercício das mesmas. Do contrário, o membro do Ministério Público que acusasse alguém por prática de crime poderia ser, ao final, processado e julgado por calúnia, na hipótese de absolvição do acusado (mesmo que por insuficiência de provas). O mesmo raciocínio se aplicaria ao Juiz que proferisse sentença penal condenatória que viesse a ser reformada. Não por outra razão, dispõe o artigo 41 da LOMAN que, “salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem, o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir”. Também não escapariam dessas consequências nefastas os advogados, quando assistentes de acusação ou patrocinadores de queixas-crimes, se não lhes aproveitasse a imunidade do artigo 133,“in fine”, da CRFB. Por isso é que o ordenamento jurídico constitucional e legal reconhece imunidades profissionais nessas atividades ─ inclusive para o advogado ─, sendo certo que, como visto, o próprio Estatuto da OAB determina que o advogado não pode ser processado por crimes contra a honra praticados no exercício da atividade profissional (art.7º, §2º).

Ocorre que diversos dos direitos e prerrogativas previstos em lei para os advogados, e notadamente aqueles que serão referidos pelo novel art. 43-A (por remissão ao art. 7º do Estatuto da OAB), podem ser objeto de viva controvérsia quanto ao seu alcance e forma de aplicação, até mesmo por serem genéricos e insuficientemente descritivos. Daí porque são recorrentes os casos em que juízes, membros do Ministério Público, autoridade policiais e administrativas e os próprios parlamentares ─ especialmente nas comissões de inquérito ─ interpretam de modos diversos, a cada situação, a prerrogativa ou o direito invocado pelo advogado, notadamente nos pontos mais obscuros (p. ex., “além dos cancelos” ─ mesmo dentro das secretarias e cartórios?[8] ─, “em qualquer assembleia ou reunião” ─ inclusive as de acesso restrito, como as familiares ou religiosas? ─, “independentemente de horário previamente marcado” ─ mesmo que o juiz esteja em plena inquirição de testemunha? ─, “processos judiciais ou administrativos de qualquer natureza” ─ inclusive em feitos preparatórios de termos de ajustamento de conduta ou de acordos de delação premiada? ─, “assistir a seus clientes” ─ qualquer tipo de “assistência”, inclusive a verbal e a material? ─ etc.).

Pois bem: uma vez aprovado o PL n. 8.347/2017, essa “interpretação”, inerente à atividade desses profissionais, passará a configurar sério risco de que aquele juiz, membro do Ministério Público, autoridade policial, autoridade administrativa ou parlamentar respondam por crime de violação de prerrogativas de advogado, desde que, na concepção do juízo ou tribunal a que for distribuída a ação penal ─ e a própria OAB poderá fazê-lo, por seu conselho federal ou seccional, nos termos do novel art. 43-A, §4º ─, a intelecção jurídica dada para o texto não for a “correta”. Quanto à própria imunidade advocatícia, aliás, há fundada doutrina entendendo que a inviolabilidade do artigo 133 da CRFB e do artigo 7º, §2º, da Lei 8.906/94 não alcança os notórios excessos, absolutamente desnecessários para a defesa profissional dos interesses do cliente (como quando, p.ex., assacam-se contra o juiz ou o promotor palavras de baixo calão, em audiência ou em petições). Veja-se, a propósito, o sempre lembrado escólio de BITENCOURT[9] ─ que hoje pertence aos próprios quadros da OAB ─ ou, ainda, o próprio teor da ADIn n. 1127-8, em cujo bojo se exarou a medida liminar que suspendeu a eficácia do preceito do art. 7º, §2º, quanto à figura do desacato.

Aliás, exemplos ingentes dessas situações ─ de oscilação hermenêutica quanto ao conteúdo das normas que estatuem direitos e prerrogativas a advogados ─ dão-se ao ensejo das próprias comissões parlamentares de inquérito, em que geralmente se impõem limites à participação do advogado; ou, ainda, ao ensejo do julgamento de certas modalidades de recursos nos tribunais, quando a lei ou os regimentos não preveem a possibilidade de manifestação de advogados. Não se franqueando a palavra ao patrono, dar-se-á o novel crime?

Tudo a revelar que, ao cabo e fim, a norma penal em branco que se está prestes a aprovar, com remissão a vários incisos do art. 7º do Estatuto da OAB, poderá ensejar perigosas ocasiões de persecução penal por “crime de hermenêutica”, incriminando-se a conduta de juiz, promotor, delegado, parlamentar ou qualquer outro que venha a interpretar os referidos incisos seguindo teses minoritárias, em desfavor de certo advogado, mas dentro de sua independência técnica e no exercício de suas funções. Nada mais absurdo.

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DESCARTES disse, no século XVII, que “a primeira máxima de todo cidadão deve ser a de obedecer as leis e os costumes de seu país, e, em todas as demais coisas, governar-se segundo as opiniões mais moderadas e mais distantes do excesso” (g.n.).

Essa é uma sábia lição, inclusive para os cultores da lei. Mas o é especialmente para os construtores da lei. Para que ela própria, a lei, afaste-se do excesso.

Nas veredas do Direito Penal, isso não é menos que vital.

Oxalá o Parlamento brasileiro o perceba a tempo.

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Sigo à disposição, caro leitor, nos e-mails [email protected]/[email protected], para dialogar consigo. O tema desta coluna ─ que desenvolvi com meu querido amigo Saulo Fontes, antiga e nova liderança da Magistratura do Trabalho maranhense ─ deverá provavelmente conhecer novidades até o final desta legislatura. Aguardemos… E, enquanto isto, sugira outros temas! Você é a razão de ser desta coluna. E, não custa lembrar, é sempre réu do seu juízo.

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[1] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Trad. Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: REVAN/Instituto Carioca de Criminologia, 2002. Passim.

[2] QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito Penal: Introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2001. pp.23-24.

[3]  ZAFFARONI, Eugénio Raul; BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro I. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. Passim.

[4] RODRÍGUEZ-ARIAS, Antonio Mateos. Derecho penal y protección del medio ambiente. Madrid: Colex, 1995. pp.159-163.

[5] Idem, pp.164-166.

[6] ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general (Fundamentos. La estructura de la teoria del delito). Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. t. I. pp.51-58 (“La derivación del bien jurídico de la Constitución” – g.n.).

[7] Idem, pp.56-57.

[8] E o Conselho Nacional de Justiça já disse que não: veja-se o PCA n. 0004336-23.2013.2.00.0000,  julgado em plenário no dia 14/4/2014. Nos termos da notícia correspondente, “[o] Conselho Nacional de Justiça (CNJ) manteve, na última sessão do dia 8 de março, três atos administrativos editados por magistrados da 1ª, 2ª e 3ª Varas do Trabalho de Mossoró/RN, que fixavam como regra geral o atendimento a advogados e partes no balcão das Secretarias das Varas. Os atos restringiram a circulação de advogados e partes no interior das Varas, salvo nas situações em que o acesso for autorizado pelo juiz” (g.n.). V. http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/61550-conselho-mantem-atos-que-determinam-o-atendimento-de-advogados-e-partes-no-balcao-da-secretaria-de-vara-do-trabalho (acesso em 10/12/2017).

[9] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. Passim.

Guilherme Guimarães Feliciano
Saulo Tarcísio Carvalho Fontes