Por Vladimir Passos de Freitas

A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou no dia 5 passado o Projeto de Lei 8.347/2017, que torna crime o desrespeito às prerrogativas dos advogados previstas nos incisos I, II, III, IV, V, XIII, XV, XVI ou XXI do art. 7º do Estatuto da Advocacia, Lei 8.906/1994, podendo as penas ir de 1 a 4 anos de prisão.[1]

O PL que já havia sido aprovado no Senado (PLS 141/2015), agora será enviado ao Plenário da Câmara dos Deputados, onde tem grande possibilidade de vir a ser aprovado. O fato foi comemorado pela OAB, porque referidas prerrogativas não seriam respeitadas pelas autoridades públicas.

No entanto, um exame desapaixonado desse PL leva-me a conclusão diversa. Acredito que, uma vez transformado em lei, será um passo a mais para aumentar o caos do nosso sistema de Justiça.

O que escrevo nada tem de corporativo, porque fui juiz por muito tempo. Na verdade, não poucas vezes fiz sérias críticas à magistratura e bom exemplo disto está na coluna de 12 de junho de 2016: Juízes e associações devem aperfeiçoar relacionamento com a sociedade.[2]

Portanto, se e quando discordo ou critico algo tenho por meta, sempre, o aprimoramento do sistema de Justiça.

Feito este esclarecimento, vejamos. O Estatuto da OAB, especifica no art. 7º os direitos dos advogados. Visam eles dar a estes atores jurídicos plena liberdade no exercício de suas funções, a fim de que possam defender seus clientes com total independência. O objetivo é absolutamente legítimo. Todavia, criminalizar a conduta de quem cerceia a aplicação das prerrogativas é algo preocupante e que deve ser visto com cautela.

Normalmente, muitos são fervorosamente a favor porque se lembrarão de um incidente em que foram mal tratados. Juízes também contarão episódios constrangedores. Ninguém falará, contudo, de centenas de audiências em que tudo transcorreu normalmente. E é por isso que a análise exige que se sobreponha a razão sobre a emoção.

A primeira observação é a de que juízes e outras autoridades públicas vivem momento de crescente perda de autoridade. Ainda me assusto com fatos como o de uma diretora de escola pública em Teresina (PI), dias atrás, ter sido agredida por uma aluna de 16 anos por exigir o uso completo do uniforme.[3]

E esta violência também já chegou ao Judiciário. No dia 12 passado o Fórum de Marau (RS) foi alvo de disparos que atingiram a sala de audiências.[4] No dia 15, em uma audiência de conciliação no Juizado Especial de Praia Grande (SP), o juiz de Direito João L. S. Nascimento foi xingado e agredido com um soco na boca.[5]

Portanto, sujeitos a ameaças de organizações criminosas, de terem de responder representações e prestar contas às corregedorias e conselhos, de correrem o risco de serem ofendidos publicamente ou agredidos em sala de audiência, estarão os magistrados, também, sob o risco de tornarem-se réus de ações penais por descumprimento do Estatuto da Ordem.

Vejamos algumas situações que poderão tornar-se crimes. O inc. II garante ao advogado “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”. Cria, assim, uma imunidade que nem os parlamentares possuem.[6]

Segundo consta o Brasil superou o número de 1.000.000 de advogados. Muito embora a maioria absoluta seja correta, evidentemente, há exceções, algumas graves. O jornal A Tribuna de 14 de dezembro de 2017 informa que o TRF-3 condenou cinco réus por tráfico internacional de entorpecentes, através do porto de Santos, e associação para o tráfico. A acusação foi fruto de apreensões de 3,7 toneladas de cocaína.

Pois bem, um dos cinco era advogado.[7] Se a inviolabilidade fosse absoluta, teria sido possível investigar o delito? Os policiais se arriscariam a incluir o causídico entre os suspeitos, mesmo podendo acabar sendo processados?

Outro exemplo. O inc. V assegura ao advogado o direito de não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas, e, na sua falta, em prisão domiciliar. Porém, se o caso for grave e não houver sala adequada, o juiz se arriscará a manter o advogado preso, ainda que por poucos dias, aguardando sua remoção? Com risco de ser processado? Não, por certo.

O inc. XVI criminalizada o não atendimento à retirada de autos de processos findos, mesmo sem procuração, pelo prazo de dez dias. Isto nem sempre é simples, porque os arquivos, principalmente na Justiça de Estados mais antigos e populosos, ocupam locais gigantescos. Será o funcionário encarregado processado criminalmente?

Quais os riscos? Teremos juízes acovardados, que tudo farão, a fim de não incompatibilizar-se com os advogados e terem que responder criminalmente. E mais. Temerosos da possível ação do Ministério Público, a ele concederão o possível e o impossível, a fim de manter boas relações, prejudicando a necessária imparcialidade.

Agentes do MP estarão em risco menor, porque são os que irão apreciar as dezenas de representações que chegarão toda semana. Mas também estarão expostos.

Policiais reagirão cruzando os braços. Já estão habituados a serem acusados de tudo, até mesmo por tipificar os fatos de forma contrária à opinião do promotor. Por questão de hermenêutica, até por improbidade administrativa, às vezes, respondem. São raras decisões como a da 1ª Câmara Criminal do TJ-SP, relator des. Marcos Pimentel, que repudiou acusação do MP-SP em tal sentido. Mas persistirão se a lei entrar em vigor?

Em suma, os conflitos hoje existentes, fruto de queda flagrante nas relações humanas, tendem a agravar-se. No entanto, se ao juiz for negado o poder de polícia das audiências, se a cada ato processual vier a ter o risco de ser contraditado, colocado em situação de desprestígio perante as partes e seus servidores, estaremos entrando em um processo anárquico com consequências negativas desastrosas.

Não se olvide que os incisos permitem interpretação ampla e serão, muitas vezes, usados com o intuito de intimidar o magistrado. Não raramente, advogados darão ordem de prisão em flagrante ao juiz, em plena audiência. Haverá uma flagrante violação ao livre exercício da atividade jurisdicional, que enfraquecerá totalmente a atuação dos magistrados.

E assim, pouco depois, o Brasil voltará aos tempos de processo e prisão apenas contra os pobres, porque, evidentemente, operações como a “lava jato”, que transformaram o país prendendo empresários e políticos importantes, não serão mais possíveis. Como afirmou Roberto Veloso, presidente da Associação dos Juízes Federais: “isto pode gerar o paraíso para a práticas de crimes”.[8]

Em suma, por clara violação ao princípio da isonomia, já que o PL dá a uma categoria direitos que nenhuma outra classe profissional possui (Constituição, art. 5º, inc. I), pelo que ele tem de subjetivo e porque irá levar juízes, delegados e outros agentes públicos a tornar-se amedrontados, aduladores e descompromissados, esta iniciativa é, no mínimo, assustadora.

É lamentável que não tenha sido possível contornar-se a insatisfação através do diálogo entre instituições, aparando-se as arestas e evitando-se o ato extremo de criminalização. Só em harmonia os serviços fluem de forma positiva, incidentes, gravações, filmes para serem usados como provas, tornarão a rotina forense tensa e estressante.

Finalmente, deixo expresso que nada, absolutamente, nada, tenho contra a advocacia. Exerci a profissão com orgulho no início de minha vida profissional. Em 36 anos de serviço público (10 como Promotor e 26 de magistrado federal), tive sempre o melhor dos relacionamentos com os advogados e a OAB.

De sobra, por prestigiar a Ordem, quando fui presidente do TRF-4, sofri um processo no TCU, tudo porque designei um colega para prestigiar cerimônia de posse na OAB-SC e outro na OAB-PR. O TCU me autuou, sob a alegação de que, não sendo a OAB órgão público, as diárias que cada colega recebeu pelo deslocamento deveriam ser, por mim, pagas.
Por Vladimir Passos de Freitas

A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou no dia 5 passado o Projeto de Lei 8.347/2017, que torna crime o desrespeito às prerrogativas dos advogados previstas nos incisos I, II, III, IV, V, XIII, XV, XVI ou XXI do art. 7º do Estatuto da Advocacia, Lei 8.906/1994, podendo as penas ir de 1 a 4 anos de prisão.[1]

O PL que já havia sido aprovado no Senado (PLS 141/2015), agora será enviado ao Plenário da Câmara dos Deputados, onde tem grande possibilidade de vir a ser aprovado. O fato foi comemorado pela OAB, porque referidas prerrogativas não seriam respeitadas pelas autoridades públicas.

No entanto, um exame desapaixonado desse PL leva-me a conclusão diversa. Acredito que, uma vez transformado em lei, será um passo a mais para aumentar o caos do nosso sistema de Justiça.

O que escrevo nada tem de corporativo, porque fui juiz por muito tempo. Na verdade, não poucas vezes fiz sérias críticas à magistratura e bom exemplo disto está na coluna de 12 de junho de 2016: Juízes e associações devem aperfeiçoar relacionamento com a sociedade.[2]

Portanto, se e quando discordo ou critico algo tenho por meta, sempre, o aprimoramento do sistema de Justiça.

Feito este esclarecimento, vejamos. O Estatuto da OAB, especifica no art. 7º os direitos dos advogados. Visam eles dar a estes atores jurídicos plena liberdade no exercício de suas funções, a fim de que possam defender seus clientes com total independência. O objetivo é absolutamente legítimo. Todavia, criminalizar a conduta de quem cerceia a aplicação das prerrogativas é algo preocupante e que deve ser visto com cautela.

Normalmente, muitos são fervorosamente a favor porque se lembrarão de um incidente em que foram mal tratados. Juízes também contarão episódios constrangedores. Ninguém falará, contudo, de centenas de audiências em que tudo transcorreu normalmente. E é por isso que a análise exige que se sobreponha a razão sobre a emoção.

A primeira observação é a de que juízes e outras autoridades públicas vivem momento de crescente perda de autoridade. Ainda me assusto com fatos como o de uma diretora de escola pública em Teresina (PI), dias atrás, ter sido agredida por uma aluna de 16 anos por exigir o uso completo do uniforme.[3]

E esta violência também já chegou ao Judiciário. No dia 12 passado o Fórum de Marau (RS) foi alvo de disparos que atingiram a sala de audiências.[4] No dia 15, em uma audiência de conciliação no Juizado Especial de Praia Grande (SP), o juiz de Direito João L. S. Nascimento foi xingado e agredido com um soco na boca.[5]

Portanto, sujeitos a ameaças de organizações criminosas, de terem de responder representações e prestar contas às corregedorias e conselhos, de correrem o risco de serem ofendidos publicamente ou agredidos em sala de audiência, estarão os magistrados, também, sob o risco de tornarem-se réus de ações penais por descumprimento do Estatuto da Ordem.

Vejamos algumas situações que poderão tornar-se crimes. O inc. II garante ao advogado “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”. Cria, assim, uma imunidade que nem os parlamentares possuem.[6]

Segundo consta o Brasil superou o número de 1.000.000 de advogados. Muito embora a maioria absoluta seja correta, evidentemente, há exceções, algumas graves. O jornal A Tribuna de 14 de dezembro de 2017 informa que o TRF-3 condenou cinco réus por tráfico internacional de entorpecentes, através do porto de Santos, e associação para o tráfico. A acusação foi fruto de apreensões de 3,7 toneladas de cocaína.

Pois bem, um dos cinco era advogado.[7] Se a inviolabilidade fosse absoluta, teria sido possível investigar o delito? Os policiais se arriscariam a incluir o causídico entre os suspeitos, mesmo podendo acabar sendo processados?

Outro exemplo. O inc. V assegura ao advogado o direito de não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas, e, na sua falta, em prisão domiciliar. Porém, se o caso for grave e não houver sala adequada, o juiz se arriscará a manter o advogado preso, ainda que por poucos dias, aguardando sua remoção? Com risco de ser processado? Não, por certo.

O inc. XVI criminalizada o não atendimento à retirada de autos de processos findos, mesmo sem procuração, pelo prazo de dez dias. Isto nem sempre é simples, porque os arquivos, principalmente na Justiça de Estados mais antigos e populosos, ocupam locais gigantescos. Será o funcionário encarregado processado criminalmente?

Quais os riscos? Teremos juízes acovardados, que tudo farão, a fim de não incompatibilizar-se com os advogados e terem que responder criminalmente. E mais. Temerosos da possível ação do Ministério Público, a ele concederão o possível e o impossível, a fim de manter boas relações, prejudicando a necessária imparcialidade.

Agentes do MP estarão em risco menor, porque são os que irão apreciar as dezenas de representações que chegarão toda semana. Mas também estarão expostos.

Policiais reagirão cruzando os braços. Já estão habituados a serem acusados de tudo, até mesmo por tipificar os fatos de forma contrária à opinião do promotor. Por questão de hermenêutica, até por improbidade administrativa, às vezes, respondem. São raras decisões como a da 1ª Câmara Criminal do TJ-SP, relator des. Marcos Pimentel, que repudiou acusação do MP-SP em tal sentido. Mas persistirão se a lei entrar em vigor?

Em suma, os conflitos hoje existentes, fruto de queda flagrante nas relações humanas, tendem a agravar-se. No entanto, se ao juiz for negado o poder de polícia das audiências, se a cada ato processual vier a ter o risco de ser contraditado, colocado em situação de desprestígio perante as partes e seus servidores, estaremos entrando em um processo anárquico com consequências negativas desastrosas.

Não se olvide que os incisos permitem interpretação ampla e serão, muitas vezes, usados com o intuito de intimidar o magistrado. Não raramente, advogados darão ordem de prisão em flagrante ao juiz, em plena audiência. Haverá uma flagrante violação ao livre exercício da atividade jurisdicional, que enfraquecerá totalmente a atuação dos magistrados.

E assim, pouco depois, o Brasil voltará aos tempos de processo e prisão apenas contra os pobres, porque, evidentemente, operações como a “lava jato”, que transformaram o país prendendo empresários e políticos importantes, não serão mais possíveis. Como afirmou Roberto Veloso, presidente da Associação dos Juízes Federais: “isto pode gerar o paraíso para a práticas de crimes”.[8]

Em suma, por clara violação ao princípio da isonomia, já que o PL dá a uma categoria direitos que nenhuma outra classe profissional possui (Constituição, art. 5º, inc. I), pelo que ele tem de subjetivo e porque irá levar juízes, delegados e outros agentes públicos a tornar-se amedrontados, aduladores e descompromissados, esta iniciativa é, no mínimo, assustadora.

É lamentável que não tenha sido possível contornar-se a insatisfação através do diálogo entre instituições, aparando-se as arestas e evitando-se o ato extremo de criminalização. Só em harmonia os serviços fluem de forma positiva, incidentes, gravações, filmes para serem usados como provas, tornarão a rotina forense tensa e estressante.

Finalmente, deixo expresso que nada, absolutamente, nada, tenho contra a advocacia. Exerci a profissão com orgulho no início de minha vida profissional. Em 36 anos de serviço público (10 como Promotor e 26 de magistrado federal), tive sempre o melhor dos relacionamentos com os advogados e a OAB.

De sobra, por prestigiar a Ordem, quando fui presidente do TRF-4, sofri um processo no TCU, tudo porque designei um colega para prestigiar cerimônia de posse na OAB-SC e outro na OAB-PR. O TCU me autuou, sob a alegação de que, não sendo a OAB órgão público, as diárias que cada colega recebeu pelo deslocamento deveriam ser, por mim, pagas.