“A dignidade dos honorários da advocacia” de autoria do Diretor-Tesoureiro da OAB, Antonio Oneildo Ferreira. Confira abaixo a íntegra do artigo:

Dignidade é substantivo feminino que expressa uma “qualidade moral que infunde respeito, consciência do próprio valor, honra, autoridade, nobreza”.1 Só se atribui dignidade, logo, a algo que se reconheça de fato como grande, nobre, elevado. Quando a advocacia reivindica honorários dignos – como ocorre no contexto da “Campanha Nacional pela Dignidade dos Honorários”,2 liderada pelo Conselho Federal da OAB –, está a exigir que a classe seja tratada na exata proporção de seu protagonismo entre as instituições-chave para a construção, a consolidação e a manutenção do Estado democrático de direito.

Sendo a advocacia indispensável à administração da Justiça – preceito estampado no art. 133 da Constituição Federal –, o aviltamento dos honorários necessariamente repercute negativamente em termos de malefícios para o sistema de Justiça como um todo. Advogadas e advogados mal remunerados terão feridas sua dignidade, sua independência e seu meio regular de subsistência, e assim diminuídas suas condições para colaborar com o acesso à tutela jurisdicional justa e com a fiscalização das instituições públicas.

A discussão sobre a valorização dos honorários encerra inestimável interesse não só para a classe, como para toda a sociedade. Os honorários estabelecem um padrão digno para a advocacia, compatível com sua expressão social de grupo indispensável à administração da Justiça. Não por acaso, honorários têm natureza equivalente à remuneração dos trabalhadores assalariados e aos subsídios dos funcionários públicos, na medida em que detêm natureza alimentar, sendo impenhoráveis, crédito prioritário e insuscetíveis de retenção. São os honorários que alimentam a classe que é indispensável à administração da justiça, garantindo-lhe o usufruto do mínimo existencial, daí a importância capital de se assegurar sua dignidade.

Nomeia-se honorários a retribuição pecuniária, fixada amigavelmente, como contraprestação pelos serviços prestados pelos profissionais da advocacia. Etimologicamente, honorário (latim: honorarium) deriva da palavra “honra” (latim: honos). Os romanos acreditavam que a retribuição de um cliente ao seu patrono era um ato honorífico, algo que transcendia a lógica mercantilista da remuneração pecuniária. A designação de “honorários” remete a uma dívida de honra que transcende o reclamo do comum salário, haja vista a dignidade da profissão envolvida.3

Há, evidentemente, razões históricas para que a contraprestação recebida pela advocacia em nome de seus representados seja considerada um ato de honra, e não mercantil. Inicialmente, era vedada a cobrança realizada em virtude da representação de um cidadão em um tribunal. A cobrança de honorário só passou a ser admitida – embora com limitações – a partir do governo do imperador romano Cláudio (41-54 d.C.), em benefício de uma classe que estava a desenvolver-se entre o segundo e o quarto séculos em Roma, prestando assistência jurídica, notadamente no nível da representação em tribunais.4

O surgimento de advogados profissionais, contudo, só seria registrado na civilização ocidental a partir do século XII. Até então, o serviço correspondente à advocacia era oferecido por semiprofissionais não versados em um estudo específico e aprofundado sobre as normas de direito aplicáveis. Neste momento surge a palavra advocatus (designa “aquele que é chamado em auxílio”, do verbo advocare), ampla o bastante para abarcar uma série de atividades relativas ao julgamento: a da testemunha, a do auxiliar do juiz, e inclusive a do moderno advogado.5

Desde então, o ofício dos advogados foi-se especializando mais e mais, exigindo-lhes dedicação integral e competência sobrecomum. Nessa esteira desenvolveu-se e aprimorou-se o instituto dos honorários advocatícios. No ordenamento jurídico brasileiro, atualmente há previsão de três espécies de honorários, cada qual com origem de estipulação distinta. Essa regra se infere do art. 22 da lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB): “A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência”. São, portanto, as três espécies: i) os honorários contratuais ou convencionais; ii) os honorários sucumbenciais e iii) os honorários fixados por arbitramento judicial.

  1. i) Contratuais ou convencionais são os honorários combinados livremente pelo profissional e pelo cliente em contrato, via de regra escrito, assinado por ambos. Inclusive a forma de pagamento pode ser livremente pactuada, por acordo mútuo, admitindo-se um valor cobrado no início do processo (em prestação única ou mensalidades); um valor no final do processo, percentualmente proporcional ao êxito do cliente; ou uma combinação de múltiplas formas. Em regra (isto é, caso não seja estipulado o contrário), serão devidos um terço dos honorários no início do serviço, outro terço até a decisão de primeira instância e o restante no final (art. 22, § 3º do EAOAB).
  2. ii) Sucumbenciais são os honorários pagos pela parte vencida ao advogado da parte vencedora. Seu valor é fixado pelo juiz que presidiu o processo, e deve variar entre 10 e 20% sobre o valor na condenação, sendo observados os critérios do grau de zelo do profissional, do lugar de prestação do serviço, da natureza e importância da causa, e do tempo exigido para o serviço – conforme o art. 85, § 2º da lei 13.105/15 (novo CPC). Ainda na dicção do mesmo art. (§ 1º), “são devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença provisório ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente”.

iii) Na hipótese em que advogado e cliente não tenham pactuado previamente honorários contratuais, ou que discordem após uma combinação verbal, os honorários são arbitrados judicialmente. Nessa situação, um juiz analisa o caso e fixa um valor que entende como correto, à luz da natureza do trabalho, do valor econômico da questão e dos limites da tabela de honorários da OAB. O advogado deve renunciar previamente ao mandato recebido pelo cliente em débito, conforme consta do art. 43 do Código de Ética e Disciplina da OAB – CED.

Para dirimir tempestivamente antiga controvérsia, o novo CPC acrescentou ao Estatuto dispositivo em que expressamente se reconhece que os honorários assistenciais sucumbenciais, “compreendidos como os fixados em ações coletivas propostas por entidades de classe em substituição processual”, devem ser revertidos em favor dos advogados – e não das entidades sindicais –, sem prejuízo dos honorários convencionais (art. 22, §7º do EOAB, nova redação).

Quanto à interpretação do § 2º do art. 85 do novo CPC – dispositivo legal que prevê honorários de 10 a 20% sobre o valor da condenação, do proveito econômico ou valor atualizado da causa –, questionada judicialmente, a OAB requereu em setembro de 2018 o ingresso como amicus curiae no agravo no REsp 262.900/SP, sob apreciação da 2ª seção do STJ. O Presidente da entidade, Claudio Lamachia, argumenta que “o novo CPC é claro ao estabelecer critérios objetivos e garantias para que a verba honorária seja digna e capaz de atender a sua natureza alimentar, bem como as necessidades inerentes ao exercício da advocacia”.6

O ordenamento jurídico de todas as nações comprometidas com a Justiça confere especial dignidade à advocacia. Tão relevante é a advocacia – pública e privada – para a organização do Estado democrático de direito, que a Constituição Federal a elencou expressamente entre as funções essenciais à Justiça (Título IV, Capítulo IV), entre outras instituições do sistema de Justiça. A advocacia, nos termos do art. 133, “é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Expressamente é reconhecido, portanto, que o advogado, ainda que em exercício privado, presta serviço público e desempenha função social (“No seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social” – art. 2º, § 1º do EAOAB).7

O direito brasileiro se insere em uma tradição de séculos em que se prescreve que a advocacia perceberá honorários justos pela prestação do serviço contratado, assegurando-lhe a possibilidade de cobrá-los inclusive judicialmente em caso de descumprimento da contraprestação por parte do cliente. Os Conselhos Seccionais da OAB ocupam-se de regulamentar, dentro de suas respectivas circunscrições, os valores mínimos dos honorários para cada modalidade de serviço, considerando que se coadunem “com o trabalho e o valor econômico da questão” (art. 22, § 2º do EAOAB).

Em virtude de seu compromisso com o interesse público, a advocacia é inconciliável com qualquer atividade de mercantilização, nos termos do art. 5º do CED. A cobrança de honorários, assim, não se fundamenta na busca pelo lucro, mas sim na necessária subsistência de uma classe que é indispensável à administração da Justiça, sem a qual os direitos fundamentais do cidadão tornam-se mera declaração estéril. Afinal, para que os direitos adquiram concretude, ao serem demandados e posteriormente aplicados judicialmente, é necessária uma classe de advogadas e advogados atuantes, munida de condições materiais e existenciais para trabalhar com destemor e independência em prol do direito de defesa e de acesso à justiça.

De tamanha monta é a função da advocacia que sobre esta não incide o CDC. A missão social de que é incumbido o advogado não pode ser mercantilizada, sob pena da perda de sua independência, basilar para a administração da Justiça e, consequentemente, para o fortalecimento do Estado democrático de direito. A advocacia exerce serviço público disciplinado pelo Estatuto da Advocacia, e não pela lei consumerista.8

O novo CPC foi pioneiro ao reconhecer expressamente o caráter alimentar dos honorários advocatícios, ao contrário dos diplomas anteriores que disciplinavam o assunto: o CDC e o Estatuto da Advocacia. Por ausência de expressa previsão legal, longa controvérsia persistiu nesse tocante. O EAOAB já havia sido vanguarda no tema dos honorários ao atribuir ao advogado ou à advogada “direito autônomo para executar a sentença na parte de honorários” que a ele ou a ela pertencem (art. 23). Deixava-se claro, portanto, que a verba honorária pertence à advocacia, nunca à parte.

O NCPC avançou mais ainda: além de reafirmar a titularidade da advocacia sobre os honorários, o § 14 do art. 85 os elevou ao patamar privilegiado dos alimentos, realçando a importância da subsistência daqueles profissionais que são indispensáveis, por destinação constitucional, à administração da Justiça. Aproveitou a oportunidade para vedar manifestamente a polêmica compensação em caso de sucumbência parcial: “Os honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, sendo vedada a compensação em caso de sucumbência parcial” (art. 85, § 14).

Eventuais argumentos contrários a esse entendimento, o qual já vinha sendo consolidado em sede jurisprudencial, tornaram-se definitivamente defasados, sem qualquer respaldo jurídico na lei pátria. Superado o debate histórico, há consenso de que os honorários são análogos ao salário, pois se destinam a finalidades de sustento, alimentação, moradia, manutenção etc. O novo CPC, afinal, foi construído com reverência às compreensões já firmadas na tradição jurisprudencial nacional, no intuito de trazer ao jurisdicionado maior segurança jurídica.9

A natureza alimentar traz ao instituto dos honorários algumas características relevantes, tais como:

  1. a) Honorários advocatícios são impenhoráveis. Eventual credor não poderá atingir a verba remuneratória da advocacia, seja ela contratual, sucumbencial ou judicial, a fim de satisfazer seu crédito, conforme dispõe o art. 833, IV do novo CPC, no que concerne aos honorários de profissional liberal.
  2. b) Possibilidade de penhora de verbas remuneratórias de devedor para pagamento de honorários. Sendo os honorários o meio de subsistência basilar da advocacia, o descumprimento de seu pagamento configura fundamento para que seja autorizada a penhora de rendimentos e salários de seus devedores, bem como desconto em folha de pagamento. Acredita-se que esse meio é proporcional e necessário para equacionar a colisão entre o direito a alimentos do credor e o direito de mesma natureza do devedor.10 Tal discussão é bem cristalizada no âmbito jurisprudencial.11
  3. c) Honorários são, em regra, crédito prioritário. Destacam-se como crédito privilegiado na instauração de concurso de credores e no recebimento dos créditos habilitados em processo falimentar (art. 24, caput do EAOAB) e como crédito preferencial face à Fazenda Pública (art. 100, § 1º da CF), segundo a sistemática dos precatórios.12 Há ainda o entendimento jurisprudencial de que o crédito honorário guarda preferência frente ao crédito hipotecário.13

Apresenta-se como inquestionável a condição de direito fundamental dos honorários, na medida em que, sendo a remuneração da advocacia, corporificam sua legítima fonte de rendimentos basilares, de alimentos, de provisão material e existencial, de subsistência pessoal, familiar e profissional – enfim, de dignidade. É imperativo que a remuneração da advocacia seja condizente com o que dela se espera e se exige em termos de responsabilidade social: nada menos do que servir como um agente social da Justiça.

No intuito de zelar pela dignidade dos honorários sucumbenciais e judiciais, é imperioso que os magistrados respeitem sua estipulação com base nos critérios objetivos estabelecidos pelo art. 85, sempre levando em conta os percentuais fixados em lei, os valores mínimos constantes das tabelas das respectivas seccionais da OAB, e os preceitos que levam em conta o grau de zelo profissional, o lugar de prestação do serviço, a natureza e a importância da causa, e o tempo exigido para o serviço. A fixação de valores irrisórios em sede de honorários é um atentado ao direito de defesa, e, por vias reflexas, à cidadania que estrutura o próprio Estado democrático de direito.

Quando um magistrado fixa honorários em valores aviltantes, inviabiliza o exercício de todas as prerrogativas presentes no art. 7º do Estatuto da Advocacia. Advogadas e advogados mal pagos, desprovidos de autoestima profissional, de condições materiais básicas e de meios de subsistência dignos, bem como de recompensas estimulantes por sua dedicação, não terão energias suficientes para travar a árdua batalha diária pela defesa da ordem democrática, que pressupõe o regular manejo das prerrogativas em condições de bem-estar social.

Assim sendo, resta-nos concluir que o pagamento de honorários dignos está intrinsecamente relacionado ao respeito e ao fortalecimento das prerrogativas da advocacia, e, por conseguinte, ao aprimoramento do sistema de Justiça e do Estado democrático de direito. Garantir a razoabilidade no arbitramento dos honorários é uma questão prioritária de justiça, que interessa a toda a sociedade e ao Poder Público.