Reportagem: Wania Caldas / Coordenação e edição de reportagem: Natália Rocha / Coordenação geral: Rebecca Brasil
A crise climática é global, mas atinge a população mundial de diferentes maneiras e, com mais severidade, os mais vulneráveis. A afirmação é da presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB Ceará, Paula Naira Caldas Filgueira. “A crise climática não é apenas ambiental, ela também é social e profundamente desigual. Ela atinge todas as pessoas, mas não da mesma forma. As comunidades indígenas, quilombolas, populações periféricas, mulheres, moradores de áreas rurais são os mais afetados por eventos extremos, como enchentes, secas, ondas de calor”, explica.
A ideia é reforçada por Beatriz Azevedo de Araújo, presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB Ceará. “As pessoas em situação de vulnerabilidade vão sofrer muito mais com a crise climática e, ao mesmo tempo, elas contribuíram muito menos para o problema”, explica. Essas populações mais vulneráveis, segundo ela, terão menos condições de se proteger de efeitos climáticos como chuvas torrenciais, aumento do nível do mar, escassez hídrica e variações no clima.
“Essas pessoas serão atingidas tanto pelos impactos no território como pela baixa capacidade econômica de se adaptarem. Quando o preço dos alimentos aumenta por causa de uma quebra de safra, quem mais sofre com isso são as pessoas que estão na classe socioeconômica mais baixa. Então, todos esses impactos afetam de forma desproporcional pessoas em vulnerabilidade”, acrescenta Azevedo.
Segundo a advogada Paula Naira, isso se deve a três principais fatores: o histórico de desigualdade, a ausência de políticas públicas e a invisibilidade dessas populações na tomada de decisões. “É impossível a gente separar crise climática do modelo econômico que é baseado na exploração intensiva dos recursos naturais, na desigualdade do acesso à terra e na lógica do desenvolvimento que ignora quem vive, de fato, nos territórios. O desmatamento, a mineração, a especulação imobiliária, os grandes projetos de infraestrutura afetam diretamente as populações historicamente vulnerabilizadas”, avalia.
Justiça climática: o centro do debate
A noção de justiça climática está no centro das discussões nacionais e internacionais sobre o futuro do planeta. O Plano Clima, lançado pelo Governo Federal, busca guiar as ações de enfrentamento à mudança do clima até 2035, com metas de redução entre 59% e 67% das emissões líquidas de gases de efeito estufa, em comparação a 2005. O documento, que reúne planos setoriais de mitigação e adaptação, além de estratégias transversais de “transição justa” e combate às desigualdades, reconhece que os efeitos da crise recaem de forma desproporcional sobre populações pobres, negras, periféricas e rurais.
“A maior parte das emissões vem da queima de combustíveis fósseis ou por meio do desmatamento. Uma pessoa que mora na Europa tem um consumo maior em comparação a uma pessoa que mora na várzea de um rio ou numa área de favela aqui em Fortaleza, por exemplo”, destaca a presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB-CE. Essa lógica desigual dos efeitos também se aplica a determinados territórios, reforça Beatriz Araújo. “Pequenas ilhas no Pacífico devem desaparecer com aumento do nível do mar e esses locais tiveram uma emissão histórica de gases muito pequena em relação a países como os Estados Unidos e China. Então, elas estão pagando o preço mais caro. Todo esse contexto evidencia as discrepâncias dos impactos e o fato de que essas pessoas precisam de mais apoio para lidar com a crise”, diz.
Na avaliação da presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-CE, as mudanças climáticas aprofundam a violação de direitos humanos já existente. “Ela intensifica o racismo ambiental, a violência territorial, os deslocamentos forçados e a negação de outros direitos historicamente negados”, resume.
Racismo ambiental
Racismo ambiental é um outro conceito que atravessa essa discussão sobre justiça climática e redução das desigualdades. A vice-presidente da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB-CE, Tharrara Rodrigues, explica: “O conceito de racismo ambiental mostra que os impactos das mudanças climáticas e degradação ambiental recaem com muito mais força sobre populações negras, populações indígenas, populações ribeirinhas, periféricas, pessoas que já vivem em contextos de vulnerabilidade social. Isso acontece porque existe uma estrutura histórica de desigualdade no acesso ao território, ao saneamento, à moradia digna e à água potável. Então, quando vem uma enchente, uma seca, uma contaminação, quem sofre primeiro e mais intensamente são esses grupos”, pontua.
Para a advogada, é preciso criar políticas públicas que garantam o direito dessas comunidades de decidirem sobre os seus territórios e de terem condições reais de enfrentar os efeitos da crise climática. “A gente precisa de uma transição ecológica que seja ao mesmo tempo justa e antirracista. Isso significa garantir que as comunidades tradicionais estejam no centro das discussões sobre o meio ambiente. São essas populações que detém o conhecimento sobre o uso sustentável da terra, sobre o cuidado com a água, com as florestas e precisam ser reconhecidos como protagonistas e não só não só como vítimas”, ressalta Tharrara Rodrigues.
E conclui: “No fundo, o que a gente está dizendo é que enfrentar a crise climática passa por enfrentar também o racismo estrutural e cuidar do planeta. Esse é o desafio que está posto para a COP30 e para todos nós: construir um futuro em que, de fato, a justiça climática caminhe lado a lado com a justiça racial, porque não existe um futuro sustentável num mundo que perpetua desigualdades”.
Em setembro, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania participou do seminário “Justiça Climática e Racismo Ambiental: construção dos conceitos e políticas no Brasil”, realizado em Brasília. O evento reuniu representantes dos Três Poderes, especialistas, organizações da sociedade civil e lideranças de territórios impactados para discutir os fundamentos que poderão orientar políticas públicas nacionais sobre o tema.
Cenário cearense
No Ceará, os entes governamentais estão debatendo soluções e medidas de enfrentamento à crise climática. Em setembro, o Estado realizou a 3ª Conferência Internacional sobre Clima e Desenvolvimento em Regiões Semiáridas (ICID 2025), em Fortaleza. Do evento, foram produzidos dois documentos para a COP30 que reforçam a importância das regiões semiáridas nas negociações climáticas globais: a Carta de Fortaleza e a Declaração dos governadores e governadoras do Nordeste.
A Carta de Fortaleza, formulada por representantes da comunidade científica, de organismos internacionais e da sociedade civil, reafirma compromissos voltados à implementação de uma agenda de desenvolvimento sustentável, com objetivos ambientais, sociais, econômicos e institucionais. Além disso, reforça o entendimento comum diante do agravamento da crise climática, da degradação da terra, da desertificação e de suas repercussões socioeconômicas.
Segundo o Governo do Ceará, entre os pontos já definidos estão diretrizes para adaptação às mudanças do clima, manejo sustentável de recursos, incentivo à bioeconomia, fortalecimento da cooperação internacional e apoio à transição energética verde, que compõem a versão oficial que será apresentada durante a COP30 como contribuição da região Nordeste para as discussões sobre clima.
Além disso, o Ceará conta com o Plano Estadual de Mudanças Climáticas (PEMC) e o Plano Estadual de Adaptação (PEA), ambos sob coordenação da Secretaria do Meio Ambiente (Sema). O estado integra ainda o programa federal “Cidades Verdes Resilientes”, iniciativa que busca promover o uso sustentável do solo, arborização urbana, drenagem, infraestrutura verde e soluções baseadas na natureza.
Nas zonas rurais, o Plano ABC+ Ceará, voltado à agropecuária de baixa emissão, alerta para o avanço da desertificação em áreas do semiárido, onde famílias dependem da agricultura de subsistência e têm pouca capacidade de adaptação.
Em relação à Capital, o Plano Local de Ação Climática de Fortaleza, elaborado com o apoio do ICLEI América do Sul, sinaliza que as áreas da cidade que apresentam menor infraestrutura, menor IDH e maior densidade demográfica são também as que mostram maior risco climático, seja por secas, chuvas extremas, elevação do nível do mar ou inundações. O diagnóstico aponta que aquelas populações com menos recursos serão as mais impactadas, reafirmando a necessidade de políticas públicas específicas para essas áreas – inclusive como uma forma de reparação histórica às populações que sempre foram marginalizadas desde a raiz da formação da sociedade brasileira.
Links para consulta:
https://cop30.br/pt-br/sobre-a-cop30/o-que-e-a-cop
https://www.gov.br/mma/pt-br/composicao/smc/plano-clima
https://www.wribrasil.org.br/noticias/entenda-o-que-e-justica-climatica#:~:text=Mais%20do%20que%20um%20conceito,a%20abordagem%20da%20justi%C3%A7a%20clim%C3%A1tica.
https://habitatbrasil.org.br/racismo-ambiental/
https://www.oc.eco.br/wp-content/uploads/2022/08/Quem_precisa_de_justica_climatica-DIGITAL.pdf
https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2025/setembro/mdhc-fortalece-debate-sobre-justica-climatica-e-combate-ao-racismo-ambiental-rumo-a-cop30
http://www.funceme.br/?p=14391
https://www.sema.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/36/2022/01/PLano-ABC-Final_v3-1-ASSINADO.pdf