Na manhã desta segunda-feira (27/11), teve início a XXIII Conferência Nacional da Advocacia, em São Paulo. Com programação até o dia 30, a Conferência contou com comitivas de todas as seccionais, dentre elas a OAB Ceará, tendo à frente o presidente Marcelo Mota, bem como a diretoria, conselheiros e presidentes de subseccionais e de comissões da Ordem cearense estão presentes no evento.

Para Marcelo Mota, esse é o maior evento jurídico do país. “É uma grande honra estar presente nessa Conferência com advogados e advogadas de todo o país, a fim de que possamos trocar ideias e experiências com os profissionais da classe. Temos discussões de alto nível e que nos permitem, acima de tudo, atuar em defesa da advocacia, sociedade e da democracia”.

De acordo com o presidente da OAB Nacional, Claudio Lamachia, o encontro representa uma demonstração de união da advocacia nacional. “O Brasil atravessa um momento que requer o protagonismo da advocacia, pois somos nós os legitimados pela Constituição Federal a atuar como peças essenciais à Justiça na defesa dos interesses e direitos do cidadão. Sinto-me honrado por receber representantes das seccionais de todos os Estados”, ressaltou Lamachia.

Confira na íntegra o discurso do presidente Claudio Lamachia

Senhoras e senhores,

Em julho de 1977 – há mais de 40 anos, portanto -, os presidentes das seccionais da OAB de todo o país reuniam-se aqui, em São Paulo, sob o comando de Raymundo Faoro, então presidente do Conselho Federal – e hoje patrono desta 23ª Conferência Nacional da Advocacia Brasileira. O momento era crítico – dramático mesmo.

O país vivia em regime de exceção, sob a égide dos Atos Institucionais, em que os mais elementares fundamentos do Estado de Direito – habeas corpus, garantias constitucionais do Judiciário, liberdade de imprensa, prerrogativas da advocacia – estavam tolhidos. A sociedade brasileira ansiava pelo restabelecimento da democracia; postulava eleições diretas em todos os níveis, fim da censura, e clamava pela convocação de uma Assembleia Constituinte.

Em vista disso, o governo militar viu-se compelido a buscar interlocução com a sociedade civil. E bateu às portas da OAB. Raymundo Faoro, que nos presidia, foi procurado pelo senador Petrônio Portela, porta-voz do regime.

Houve divergências internas sobre se deveríamos aceitar o diálogo. Alguns não confiavam na sinceridade do regime e questionavam a eficácia daquela via. Prevaleceu, ao final, o entendimento de Raymundo Faoro, de que era preciso tentar.

Como se viu, ele estava certo. Se não obteve tudo, obteve muito: o governo Geisel restabeleceu o habeas corpus, decretou o fim da censura à imprensa e assumiu o compromisso da revogação dos atos institucionais, o que de fato o fez, um ano depois, em 1978.

O país ainda viveria mais um mandato militar, o do general Figueiredo, mas já com um roteiro claro de compromisso com a redemocratização, cujo ponto inicial – e decisivo – foi a anistia. A OAB figurou nesse processo como um farol da sociedade civil, o que a fez alvo de ataques terroristas, como o que vitimou nossa secretária, Lyda Monteiro de Souza, morta ao abrir uma carta-bomba, em 1980, na sede do Rio de Janeiro.

Foi um período turbulento, doloroso, marcado por ameaças e riscos concretos, mas ao final o país redemocratizou-se e há 32 anos vive no Estado democrático de Direito: desfruta de liberdade de imprensa, a Justiça é livre para exercer seu papel, não há restrições ideológicas para a criação de partidos – e há eleições diretas em todos os níveis.

Mas o fato de o quadro ser outro – e de estarmos numa democracia – não o torna menos dramático. De certa forma, torna-o mais complexo ainda, o que se explica pelo fato de a democracia ser caleidoscópica, enquanto a ditadura é binária. Nela, há só dois lados: os que a combatem e os que a defendem.

A democracia é multifacetada, como a realidade; ruidosa, por vezes caótica, mas a única forma que a civilização forjou de realizar, por meios pacíficos e legais, o que está expresso nos incisos I e III, do artigo 3º da Constituição Federal: “Construir uma sociedade livre, justa e solidária” – e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.

Quanto a isso, convenhamos, estamos em dívida com nós mesmos, longe de visualizar a luz no fim do túnel.

Estamos longe, mas não estamos parados. O país está em turbulência, mas em movimento, em busca do equilíbrio. A sociedade pode não saber ainda como chegar a onde quer e precisa, mas já sabe, com clareza, o que não quer.

E não quer, sob nenhuma hipótese, o retorno ao autoritarismo e o retrocesso nas conquistas sociais que obteve neste período. E é por isso que desconfia do açodamento com que um governo em fim de mandato, sem a legitimidade das urnas, e um Congresso desacreditado (para dizer o mínimo) querem impor, sem debate prévio, uma reforma como a da Previdência – assim como o fez com a trabalhista.

Não negligenciamos a importância dessas reformas – e, por isso mesmo, precisamos examiná-las com profundidade, submetendo os dados oficiais, questionáveis e questionados, ao contraditório. Sem esse procedimento, elementar numa democracia, nenhuma reforma logrará a adesão social – e sem ela haverá mais crise.

A sociedade não quer a vulgaridade do populismo estéril, que ilude a população e a mantém refém do Estado e de lideranças demagógicas e inescrupulosas. Não quer também o extremismo de candidatos messiânicos, salvadores da Pátria, que prometem o que não têm e acabam por dividi-la, impondo-lhe como padrão a intolerância, matriz da desordem e da violência.

Chega de radicalismos! O que o país quer, em suma, é uma República que faça jus ao sentido etimológico do que expressa: a res pública, a coisa pública, o bem comum.

Uma sociedade de encontros e não de confrontos; uma sociedade que sobreponha à tolerância a arrogância; que viva sob o primado da Justiça, ciente de que esta não é de direita ou de esquerda; não é antiga ou moderna: a Justiça é atemporal – e por isso mesmo paira acima de facções e circunstâncias. Isto tem que ser afirmado e reafirmado.

É essa a sociedade que estamos desafiados a construir. Não a temos, mas não podemos desistir de buscá-la, sabendo que não a obteremos no grito, nem à margem da lei, senão pelo bom senso, com firmeza e determinação. Mas, acima de tudo, usando a força da serenidade.

A depuração moral que hoje se exerce sobre as instituições do Estado é uma conquista da cidadania – necessária e irreversível. E decorre da mais grave crise – política, econômica e ética – já vivida pelo país desde a redemocratização.

A escassez de bons exemplos entre os ocupantes das altas esferas de poder agrava a crise, perpetua um temerário estado de ressentimento social, dificulta a busca por soluções e ajuda a difundir, ainda mais, os efeitos deseducativos da corrupção.

Exemplo disso, forte em conteúdo simbólico, é um vídeo, recentemente viralizado na internet, em que um bando de assaltantes faz referências a políticos enquanto viola um cofre, levando maços e maços de dinheiro. Orgulhosos, se comparam ao ex-ministro Geddel Vieira Lima. E citam o presidente Michel Temer e o ex-presidente Lula. Eis, pois, o que temos: setores da política, fundamentais para o funcionamento das instituições, servindo de inspiração a bandidos comuns. É importante frisar: moral não tem lado nem ideologia; moral tem princípios!

Essa escassez de boas referências é sintoma de um problema maior: parte substancial da classe política resolveu apostar o que lhe resta em sua própria sobrevivência, dando as costas para a construção de consensos e de pactos que permitam saídas conjuntas, moderadas e razoáveis.

Prova disso, sem dúvida nenhuma, são as distorções no já tímido alcance da reforma política. Quem poderia supor que serviria de pretexto para a aprovação de um fundo público de campanha bilionário e indecente?

O cenário é devastador. Três ex-governadores do Rio de Janeiro estão na cadeia, bem como diversos de seus ex-secretários, além de quase todos os integrantes do Tribunal de Contas daquele Estado. Presos estão também três figurões da Assembleia Legislativa fluminense: seu presidente, seu antecessor no cargo e o líder do governo.

Estão presos o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o ex-ministro de Lula e Temer, Geddel Vieira Lima, além de megaempresários e dirigentes de estatais poderosas, que roubaram dinheiro público. Há ainda uma lista imensa de denúncias envolvendo autoridades graúdas, inclusive o atual presidente, Michel Temer, e seus antecessores, Lula e Dilma.

Se, de um lado, disso se deduz o estado de degradação da política nacional, de outro, se constata que as instituições, com todas as suas limitações, com erros e acertos, estão funcionando; de algum modo, estão sensíveis ao fato de que não há possibilidade de a democracia conviver passivamente com o crime. Com ele, já advertia Ruy Barbosa, não há diálogo possível – somente a lei.

Há, sem dúvida, muito por fazer. Destaco a questão do foro privilegiado, anomalia que conflita com a cláusula pétrea constitucional de que todos são iguais perante a lei.

Nesse sentido, o foro privilegiado não é a única afronta à igualdade de todos perante a lei.

É preciso inserir nesse debate a concessão indiscriminada de carros oficiais, de escoltas armadas, de viagens de avião, de auxílio-moradia, de jantares, de festas pagas com dinheiro público e diversos outros exemplos.

Nessa lista de regalias estão ainda os supersalários dados a alguns altos servidores públicos do Legislativo, Executivo, Judiciário e do Ministério Público, que não veem problema em receber mais do que o teto definido na lei que deveria valer para todos.

O teto se tornou ficção, um verdadeiro faz de conta. Não há justificativa para alguns agentes públicos receberem verdadeiras fortunas enquanto os outros —a maioria— têm seus parcos salários atrasados e parcelados. Tudo isso, além de injusto, é insustentável.

Senhoras e senhores, advogadas e advogados brasileiros,

O país clama por Justiça. Mas não quer que, em seu nome, se pratique a injustiça. Tenho dito – e aqui o repito – que não se combate o crime, em qualquer esfera e a qualquer pretexto, cometendo-se outro crime. E a tanto equivale a busca de atalhos processuais que burlem o devido processo legal, o direito à plena defesa a presunção de inocência e ao contraditório. Não existe justiça sumária – e pior que o populismo político é o judicial.

O papel de vigilância que cabe à OAB, nos termos do que determina o seu Estatuto (que é lei federal), vem sendo exercido, ainda que muitas vezes ao custo da incompreensão de alguns. Nosso compromisso, porém, está lá, expresso no artigo 44, inciso I, que nos impõe: “Defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de Direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da Justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.

E isso temos feito, diuturnamente. Incansavelmente.

Ao defender as prerrogativas da advocacia – e ao deixar claro para a sociedade que essas prerrogativas são mais dela que da própria advocacia – estamos cumprindo o nosso Estatuto. Estamos cumprindo a lei. Sem direito de defesa, não há democracia. Mais que isso, não há civilização digna desse nome.

Nós reconhecemos, respeitamos e prezamos o papel do Ministério Público e da Polícia Federal, mas exigimos que reconheçam (e respeitem) o nosso – e não confundam o advogado com o seu cliente. Daí nosso empenho em ver aprovado – e já o foi no Senado, de forma histórica – o projeto que criminaliza a violação das prerrogativas do advogado.

Estou certo de que este será o maior legado desta nossa administração na OAB, a materialização de um direito que, se já estava implícito, torna-se agora explícito de uma vez por todas.

A advocacia é verdadeiro múnus público, é profissão de luta e de extraordinária dedicação, que não encontra na ostentação ou no dinheiro a sua verdadeira retribuição.  Nós falamos pelo cidadão, em nome do cidadão e em respeito ao cidadão! Aliás, exemplos de posturas de nossos dois patronos: Raymundo Faoro, patrono nacional; e Waldir Troncoso Peres, estadual.

Faço, aqui, um importante adendo. Não podemos e nem vamos aceitar, sob nenhuma hipótese, a mercantilização do ensino. É por isso que temos que demonstrar contrariedade ao esfacelamento dos cursos superiores com a criação dos cursos tecnológicos em serviços jurídicos, já questionados judicialmente pela OAB.

A OAB nasceu, há 87 anos, sob a égide da defesa da Constituição e do combate à corrupção, na sequência da Revolução de 1930, que tinha, entre suas principais bandeiras, banir a “República dos carcomidos”. Como se vê, o problema é antigo – e o seu combate também.

Temos autoridade moral e jurídica, provada e comprovada ao longo destas quase nove décadas, para exercer a vigilância que exercemos, em prol “da boa aplicação das leis e da rápida administração da Justiça”, como manda nosso Estatuto.

Justiça que tarda, já advertia Rui Barbosa, não é Justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Mas Justiça sumária, ao arrepio de seus ritos, também não é Justiça, senão justiçamento, que repelimos com a maior veemência.

Por isso nos colocamos novamente na defesa do habeas corpus, como feito por Faoro na ditadura, e contra a produção de provas produzidas por meios ilícitos e pela manutenção do sigilo das conversas do advogado com seu cliente e da fonte dos jornalistas. Tudo isso estava implícito naquele pacote inicial das ditas Dez Medidas de Combate à Corrupção que mobilizou a opinião pública, por meio de intensa campanha midiática, que fazia crer que os que a ele se opunham, ainda que pontualmente, estavam defendendo corruptos e corrupção.

Alguns – os juristas de Facebook – nos quiseram imputar tal acusação, que contrasta com tudo o que temos feito, desde que tomamos posse no CFOAB. A lista é enorme, mas podemos resumi-la, relembrando apenas algumas iniciativas.

Além de ingressarmos na Câmara dos Deputados com pedidos de impeachment contra Dilma Roussef e Michel Temer – e, no caso deste, de reclamarmos no Supremo a falta de providências por parte da presidência da Câmara -, fomos ao STF buscar o afastamento do então todo poderoso deputado Eduardo Cunha quando ainda presidia a Casa e desfrutava de amplo prestígio entre seus pares. Não foi fácil, não foi simples e tampouco foi tranqüilo.

Da mesma forma, continuamos a cobrar do Senado que o senador Aécio Neves responda por seus atos, como fizemos no caso do ex senador Delcídio do Amaral. O erro não está em o Supremo ter submetido o caso ao Senado. O erro está em o Senado, em nome do corporativismo, acobertar os erros do senador.

Em nenhum momento, compactuamos com a corrupção, mas não concordamos que, a pretexto de combatê-la, transgrida-se a lei. Os fins, definitivamente, não justificam os meios.

Há momentos na História – e este, sem dúvida, é um deles – em que a sociedade é desafiada a escolher o país que quer – e que legará às gerações futuras. A crise cumpre o papel de expor mazelas que as classes dirigentes (que Raymundo Faoro denominava de “estamento burocrático”) ocultaram por décadas da sociedade.

Depois da redemocratização, estamos diante do saneamento moral do país, em que o papel da Justiça – e isso envolve todos nós, operadores do Direito – é fundamental, seminal, na formatação desse novo país que estamos desafiados a construir.

E aqui faço uma profissão de fé pessoal: não estou vinculado a nenhuma facção política e sirvo apenas a minha consciência enquanto presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Meu partido é a OAB e minha ideologia é a Constituição Federal.

É com esse espírito que tenho a honra de presidir esta Conferência, cujos painéis de debates, mesas redondas e palestras abrangem os mais diversos temas da agenda ética, política, social, econômica e comportamental deste século.

Que país temos – e que país queremos? Esta, em síntese, é a essência do que trataremos nos próximos quatro dias, sob o tema “Em Defesa dos Direitos Fundamentais – Pilares da Democracia e Conquistas da Cidadania”.

Estou certo de que não decepcionaremos a sociedade, de que buscamos ser tribuna e voz. Queremos que ela se sinta aqui representada em todos os seus níveis e demandas.

Declaro, pois, abertos os trabalhos – e mãos à obra!