Matéria publicada na edição do Diário do Nordeste deste sábado (5) destaca a consolidação da democracia brasileira com a promulgação da Constituição Federal em 1988. Na matéria abaixo, o presidente da OAB-CE, Valdetário Andrade Monteiro, aponta que o acesso à justiça ainda é um desafio a ser superado.

Há exatos 25 anos, ainda num período de ressaca da ditadura militar, era promulgada, no dia 5 de outubro de 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil, símbolo de um país que pedia redemocratização e garantia de direitos individuais e coletivos. Procurados pelo Diário do Nordeste, alguns cearenses que participaram da comissão que elaborou o texto – deputados federais e senadores à época – reforçam que o texto representa a consolidação de uma democracia que tenta se firmar, mas tecem críticas às 73 emendas constitucionais que já foram agregadas à Carta Magna.

Em fevereiro de 1987, o Congresso formou uma Assembleia Nacional Constituinte para elaborar a nova Constituição. Esse grupo era formado por mais de 500 deputados federais e senadores, todos eleitos em 1986. Da bancada do Ceará, participaram 22 deputados e quatro senadores, sendo um deles, Afonso Sancho, suplente do ex-senador Virgílio Távora.

Para o deputado federal Mauro Benevides (PMDB), que ocupava vaga no Senado em 1987 e chegou a ser 1º vice presidente da Constituinte, o texto aprovado em 1988 contempla as principais exigências da sociedade, mas deixou lacunas para serem pontuadas num período posterior. “A Constituição atendeu naquele momento às grandes reivindicações do povo brasileiro, mas nós que elaboramos a Carta já tivemos a previsibilidade de entender que ela não era perfeita”, pondera.

Títulos

O texto aprovado em 1988 conta com nove títulos, englobando artigos que contemplam direitos e garantias fundamentais, direitos políticos, organização do Estado, tributação e orçamento, dentre outros. “A Carta preencheu os seus grandes objetivos. Ela representa os anseios da comunidade e tem as suas falhas, que estão sendo corrigidas. O que existe é o fundamento da garantia do direito ao cidadão”, alega Mauro Benevides.

Por sua vez, o e ex-deputado federal Lúcio Alcântara (PR), que também foi um dos membros da Assembleia Constituinte, diz que há um excesso de Propostas de Emenda à Constituição (PECs). “Em vez de estarem fazendo emendas, o mais razoável é que tivessem feito leis”, declara Alcântara, que ainda foi governador do Estado. E acrescenta: “Tem-se banalizado a PEC. Hoje tudo é uma PEC. Vamos fazer leis. A Constituição vai ficando casuística e com mais dificuldade de ser cumprida”.

O ex-deputado federal pondera que a Carta Magna de 1988 deixou alguns artigos para serem regulamentados após a promulgação da Constituição, através da criação de leis complementares. “Quando não se chegava a um consenso, se remetia à elaboração de uma lei posterior, mas algumas até hoje não foram feitas”, destaca.

Lúcio Alcântara reforça que, pelo momento histórico e pela série de reivindicações acumuladas após 21 anos de regime militar, a Constituinte aprovou uma Carta Magna brasileira detalhada e com muitos artigos. “Muitos já consideravam longa e extensa. Suscita muita discussão se esse é o melhor caminho. Naquela ocasião, estávamos saindo de uma ditadura. Havia muita expectativa pela garantia dos direitos. Foi uma saída pacífica para uma transição democrática”, explica Lúcio.

Negligenciados

Apesar de afirmar que alguns artigos da Carta ainda são negligenciados pelos poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, Lúcio Alcântara avalia que há um maior controle social atualmente. “A Constituição fica muito engessada. Nem sempre ela tem sido cumprida, mas há um movimento maior na sociedade e alguns órgãos de fiscalização que cobram isso. A sociedade se estruturou melhor para cobrar a lei”, defende.

Já o ex-senador Cid Carvalho levanta a importância das chamadas “cláusulas pétreas”, que são aquelas que não podem ser modificadas, exceto se for formada uma nova Assembleia Nacional Constituinte. “O processo constitucional de 1988 tem resultados que nunca serão apagados pelas inúmeras emendas patrocinadas pelos governos que vieram depois da promulgação. Além das cláusulas pétreas, sempre irá perdurar o fato de a Constituição haver fundado uma verdadeira democracia no Brasil”, considera.

Cid Carvalho também aponta os supostos prejuízos que as emendas constitucionais têm causado ao texto original aprovado pelos constituintes. “Todas as emendas, de um modo geral, visaram a prejudicar o texto constitucional para o interesse dos governantes, haja vista emendas como a da reeleição, todos os dispositivos de privatização, a descaracterização da empresa nacional, modificações que prejudicaram funcionários públicos e os segurados previdenciários”. E completa: “Tornou-se muito fácil emendar a Constituição”.

A despeito das ponderações a respeito das alterações por que passou o texto original, o ex-senador lembra que justamente pela segurança das cláusulas pétreas não foram aprovadas mudanças que pudessem suprimir direitos individuais e coletivos já assegurados. “A Constituição de hoje ainda é formidável, apesar de todas as investidas do Fernando Henrique Cardoso e do Lula (ex-presidentes da República) por conta das cláusulas pétreas”, declara.

Para Cid Carvalho, o excesso de leis e PECs também descaracteriza alguns princípios que nortearam os trabalhos realizados em 1987 e 1988. “Há muita lei meramente ocasional, factual, que não visa ao equilíbrio jurídico do Estado. É lei demais”, diz.

Outro cearense que consta na comissão da Assembleia Nacional Constituinte é o ex-deputado federal Ubiratan Aguiar. Para o ex-parlamentar, o clima de pós-ditadura militar guiou as discussões realizadas pelo grupo, que também chegou a receber sugestões da população.

“Nós saímos de um regime militar. No peito das pessoas, estava o sentido de garantias individuais, avanço no campo dos direitos sociais, estado democrático de direito. Nunca vi um Congresso ser tão frequentado pela sociedade como naquela época”, relata Aguiar.

Notáveis

Ubiratan Aguiar lembra que à época foram consideradas duas possibilidades para a elaboração da Constituição: que ela fosse feita através de uma comissão de notáveis que utilizassem outras experiências como base ou uma comissão formada pelos próprios representantes eleitos no Congresso Nacional em 1986, começando “do zero”. A última opção foi a escolhida.

Sobre as emendas feitas à Constituição, o ex-deputado federal entende que muitas delas foram necessárias por conta de mudanças históricas. “A lei, mesmo sendo a lei maior do País, tem que refletir as mudanças da sociedade, os avanços do campo e da tecnologia. Naquela época, não se falava em Internet. A Constituição também recebe as reivindicações da sociedade de forma que retrate uma modernidade”, defende.

Na avaliação de Ubiratan Aguiar, mesmo com as garantias asseguradas pela Carta, alguns temas não são postos em prática na sua plenitude. “Ela estabelece o Pacto Federativo, um pacto indissolúvel entre estados, municípios e a União. As desigualdades devem ser corrigidas, mas a reforma tributária nunca saiu. Há uma concentração de recursos da União. Isso foi previsto nos debates”, exemplifica.

Mesmo reconhecendo limitações na aplicação do texto constitucional, Aguiar aponta avanços no cumprimento à legislação. “De um modo geral, ela é respeitada. Temos tido o apoio da sociedade e dos órgãos de fiscalização. O maior controle que existe é o social, mas esse só vamos alcançar quando estivermos em uma sociedade politizada”, opina. Dos 26 parlamentares cearense que integraram a Assembleia Nacional Constituinte de 1988, oito já faleceram. Apenas o deputado federal Mauro Benevides ainda exerce mandato.

Juristas apontam desafios

Na avaliação de juristas ouvidos pelo Diário do Nordeste, são muitos os avanços da aprovação da Carta Magna, mas restam algumas lacunas a serem preenchidas, dentre as quais alguns direitos que, embora resguardados legalmente, ainda não se tornaram realidade para todos os cidadãos brasileiros.

De acordo com o preâmbulo da Constituição Federal de 1988, o texto visa a “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.

O jurista Valmir Pontes Filho, presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), aponta que a Carta Magna de 1988 garante todos os direitos sociais, sendo uma das Constituições mais adiantadas do mundo.

No que se refere à aprovação das emendas constitucionais, Pontes Filho ironiza: “Cheguei a afirmar certa vez que a melhor emenda seria aquela que revogasse todas as demais, restaurando a versão originária da Constituição”. O jurista reconhece que algumas delas realmente atenderam a interesses sociais, enquanto outras emendas refletem investidas políticas pessoais, como o caso da PEC que assegura o direito à reeleição, votada no primeiro mandato do ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso.

Desatinos

“Outras visaram a atender interesses menores, como a da reeleição. Ou a cometer desatinos jurídicos, como as que alteraram o regime de previdência, obrigando, por exemplo, os aposentados a contribuir novamente para a previdência”, alerta.

Questionado sobre o cumprimento da Constituição pelos três poderes, Valmir Pontes Filho diz acreditar que o Judiciário é o que mais respeita a Carta Magna, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF). “Mas não se pode falar que os demais órgãos do poder se postem de modo arredio às suas prescrições. Com o correr do tempo e com a seguida prática democrática é que chegaremos ao estado de solidez constitucional que países mais adiantados já ostentam”, analisa.

Por sua vez, o presidente da Ordem dos Advogados no Brasil no Ceará, Valdetário Monteiro, afirma que a Constituição Federal de 1988 foi uma “vanguarda”, mas acrescenta ser necessário que a sociedade se aproprie do texto constitucional para cobrar a efetivação de todos os seus direitos. “É preciso que a população conheça o texto da Constituição para que cobre com maior afinco”, declara.

O presidente da OAB-Ceará endossa a tese de que a extensão da Constituição é fruto de um contexto histórico de demandas sociais acumuladas devido às restrições do regime militar. “Se fala que o texto é prolixo e detalhista. A OAB e a maioria de juristas entendem de forma contrária”. Citando as Constituições anteriores, de 1824, 1891, 1934, 1937 e 1946, ele acrescenta: “O país viveu de novo uma gangorra constitucional”.

Para Valdetário Monteiro, muito já se caminhou após a promulgação do texto de 1988, mas o acesso à Justiça, por exemplo, ainda não foi conquistado por todos os setores da sociedade. “Já evoluímos muito. As manifestações de junho último mostram isso. Não tivemos ninguém preso por ter se manifestado”, pondera o advogado.

Fonte: Diário do Nordeste (Texto: Lorena Alves)