Há 45 anos, a família Santa Cruz se pergunta: o que aconteceu com Fernando? O jovem de 26 anos militava pelo fim da ditadura quando foi preso pelos militares e sumiu, em circunstâncias nunca esclarecidas. Esta semana, o presidente Jair Bolsonaro criou polêmica ao afirmar que sabe o que aconteceu com Fernando.

O filho que Fernando deixou é hoje presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Felipe Santa Cruz, que entrou na Justiça pra que Bolsonaro esclareça o que disse, tinha 1 ano e 10 meses quando o pai desapareceu.

Uma única foto juntos. E mais nada. Orador experiente, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, precisa de alguns segundos para retomar o único assunto em que lhe fogem as palavras. “Eu preenchi esse vazio de… depoimentos de amigos, parentes, pra ter um ideial que eu pudesse de certa forma me espelhar. O que eu ouço dessas pessoas que conviveram com ele é que o grande traço do caráter dele era a generosidade”, emociona-se Felipe ao falar do pai.

Fernando era militante da Ação Popular, organização de origem católica que queria derrubar a ditadura militar instaurada pelo golpe de 1964. No dia 23 de fevereiro de 1974, um sábado de carnaval, saiu da casa do irmão, no bairro do Flamengo, em direção a Copacabana. Ele tinha um encontro com Eduardo Collier Filho, também militante. Nunca mais foram vistos.

Os dois fazem parte da lista de 434 mortos e desaparecidos políticos da Comissão Nacional da Verdade. Mas as famílias nunca encontraram os corpos nem souberam das circunstâncias do desaparecimento.

Na segunda passada, ao criticar a atuação da OAB durante a investigação do atentado que sofreu no ano passado, o presidente Jair Bolsonaro disse saber o que tinha acontecido com o pai do presidente da Ordem. No mesmo dia, ao vivo pela internet enquanto cortava o cabelo, o presidente atribuiu a morte do pai de Felipe aos próprios companheiros de militância. A declaração do presidente contraria documentos oficiais.

Existem duas hipóteses sobre o destino do corpo de Fernando: ou teria sido incinerado no forno de uma usina de açúcar em Campos, no estado do Rio, ou enterrado no cemitério de Perus, em São Paulo. Uma nova certidão de óbito foi expedida e será entregue à família este mês, dizendo tratar-se de morte não natural violenta causada pelo estado brasileiro.

Depois disso, na quarta passada, o presidente Bolsonaro trocou quatro dos sete integrantes da comissão de mortos e desaparecidos. Dois militares e dois políticos do PSL foram indicados por ele.

Três gerações da família Santa Cruz receberam o Fantástico em Olinda, Pernambuco – onde Fernando nasceu. Dizem-se aliviados pelo fato de Dona Zita, mãe de Fernando, não ter ouvido a declaração do presidente Bolsonaro. Ela morreu há pouco mais de um mês, aos 105 anos, depois de passar a vida lutando para encontrar o filho. Dona Zita e o médico Lincoln Santa Cruz tiveram dez filhos; Fernando era o quinto.

O desaparecimento dele transformou uma pacata dona de casa num vigoroso símbolo da luta pela democracia.

Mais de quarenta anos depois, agora é o neto de Dona Zita que quer explicações oficiais. Felipe Santa Cruz ajuizou uma petição ao Supremo Tribunal Federal para que Bolsonaro esclareça o que disse. O presidente tem 15 dias para se manifestar, embora ele não seja obrigado a fazê-lo.

“É quase um tapa. Quando disse que, se eu quisesse, ele diria o que aconteceu com meu pai. E quero. Eu e todas as famílias de desaparecidos do Brasil buscamos isso. Nunca minha vó morreu sonhando que um presidente da república esclarecesse pra ela o que aconteceu com o filho dela”, afirma Felipe.

Perguntado se aceitaria um pedido de desculpas do presidente, Felipe diz: “Com toda certeza. Pra mim, pro meu coração, basta. Minha vida é toda construída em negar o rancor. Eu não trato esse tema todos os dias porque eu tinha duas opções na minha vida: ou viver com rancor ou viver envenenado com o que aconteceu com meu pai no início da minha vida, olhar pra frente. Levar na vida o que de belo ele deixou”.