Crédito: Ludmyla Barros

A edição do Jornal O Povo Online, desta quarta-feira (10/04), abordou sobre o caso de ex-presos políticos defendidos por dois notórios advogados cearenses, conhecidos pela liberação de centenas de pessoas na ditadura militar. 

Confira a matéria na íntegra: 

Para presos políticos na ditadura militar brasileira, uma soltura significava mais do que a liberdade, era uma segunda chance de vida. No Ceará, dois profissionais são lembrados até hoje por suas atuações neste quesito: os advogados Wanda Sidou e Pádua Barroso. O reconhecimento não vem à toa, eles dedicaram a vida profissional, arriscando a pessoal, em prol da democracia e da justiça.

A atuação de ambos, quando voltada para a defesa de presos políticos, era feita sem a arrecadação de anuários. Em certas ocasiões, além de não cobrarem pelo serviço, eles chegavam a se irritar com a insinuação de pagamentos.

“Ouvi o relato de um cliente da Dra. Wanda, uma vez”, conta Hélio Leitão, advogado cearense, membro do Conselho Nacional da OAB. “Ela havia conseguido um habeas corpus e foi apanhá-lo no presídio. Levou-o em seu carro e no caminho ele disse: ‘agradeço, mas eu estou constrangido, a senhora está correndo riscos. Eu quero pagar pelo serviço’. Wanda simplesmente deu meia volta e brincou: ‘se for assim, vou lhe devolver pro presídio’.”

Crédito: Arquivo Pessoal

Os riscos corridos pelos advogados, de fato, eram altos. Ouvidos pelo O POVO, presos políticos defendidos por Wanda e Pádua relatam torturas das mais variadas formas. Raptados e levados para locais remotos, vendados, eles recebiam descargas elétricas, eram drogados e feridos. Após, perdiam os empregos, eram perseguidos e, muitas vezes, fugiam do Estado.

Como consequência ao perigo, advogados de presos políticos e perseguidos não eram numerosos. Sobre o próprio cenário no Ceará, Hélio Leitão comenta que Sidou e Barroso lidavam com casos cuja atuação era “muito concentrada neles”, tendo em vista a alta demanda e a pouca quantidade de defensores.

Assim, a atuação de ambos ganha ainda mais destaque. Hoje, Pádua dá nome a uma comenda da OAB-CE, destinada a advogados comprometidos com o Estado Democrático Constitucional e com a defesa dos direitos humanos. Já Wanda também nomeia comendas, medalhas e a sala do conselho estadual da OAB Ceará. Além disso, é o nome da Comissão Especial de Anistia do Estado, cujas informações e imagens serviram de base para essa matéria.

Crédito: Camila de Almeida/2015

Para Leitão, Sidou e Barroso exerceram um dos pilares da advocacia: o compromisso com a defesa da democracia e dos direitos humanos. “A advocacia tem uma imensa responsabilidade política e social. É muito mais do que um meio de ganhar a vida. Não por acaso nos regimes autoritários as primeiras vítimas são os advogados”, diz.

“Profissionais como eles devem ser exaltados. Honram a história da advocacia cearense. São exemplos de compromisso, de compreensão da advocacia, que é uma atividade essencial à realização da justiça e da democracia. São fonte permanente de inspiração para os novos advogados”, completa.

Pádua Barroso, defensor e testemunha

Estimativas consideram mais de 100 presos políticos defendidos por Antônio de Pádua Barroso durante sua vida. Nascido em 1929, em São Gonçalo do Amarante, ele se mudou para Fortaleza em 1947 para cursar o ginásio, equivalente ao atual Ensino Médio. Seu ingresso no serviço público federal se deu por meio de concurso público em 1957. No ano seguinte, entrou para o curso de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Crédito: Arquivo Pessoal

Durante a ditadura, ingressa nos quadros da OAB, sendo indicado pela própria Ordem quando surgiam, em específico, casos de advogados perseguidos políticos. Dentre esses, estava o recém-formado Benedito Bizerril. Sua prisão ocorreu em março de 1971, quando participava, em uma madrugada, de uma colocação de standards em Fortaleza. Na ocasião, comemorava-se os 49 anos do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Segundo Benedito, assim que soube de sua apreensão, o então presidente da OAB-CE, Carlos Roberto Martins Rodrigues entrou em ação, dando a Benedito a condição de advogado inscrito na Ordem, o que ele não era até então, e noticiando em veículos de imprensa o caso. “Isso me salvou de passar pelo processo de tortura. As prisões eram um verdadeiro sequestro e não eram noticiadas”, afirma.

Apesar disso, ele seguiu detido, passando um mês na Polícia Federal e sendo encaminhado para o Corpo de Bombeiros de Fortaleza, onde seguiu por alguns meses. Em seguida, foi para o Instituto Penal Paulo Sherazade (IPPS), penitenciária onde estavam outros presos políticos. Neste local, Pádua o encontrou, defendendo Benedito no processo. “Tive uma condenação de dois anos ainda, mas com uma redução da pena cumpri 8 meses de prisão”, conta.

A perseguição, no entanto, não acabou. Dois anos depois da primeira apreensão, em 1973, Benedito foi sequestrado, levado de seu local de trabalho – o Banco do Nordeste – até o gabinete do então general Murilo Borges, diretor do BNB.

Foi, então, entregue a dois agentes que o levaram a um quartel e, em seguida, a um local desconhecido, onde ele enfrentou um dia de horror. Benedito conta: “Me vendaram os olhos e me levaram para uma localidade distante, que anos depois descobri ser a Casa dos Horrores, em Maranguape. Lá sofri descargas elétricas durante um dia inteiro. No fim da tarde, fui obrigado a tomar um comprimido e me levaram de volta à Fortaleza.”

Na capital, o advogado foi levado de volta à Polícia Federal para “prestar depoimento”, que foi realizado com uma “descrição” das falas já pronta ao lado, mesmo antes do interrogatório. A soltura só se deu devido, justamente, ao processo anterior, que já constava participação e punição de Benedito. “Eu já tinha cumprido a condenação em 1971 e não tinham encontrado nada posterior a isso”, afirma.

Após, Bezerril não pôde mais exercer sua função no BNB, seguindo unicamente na carreira advocatícia, onde atuou na defesa de estudantes, de trabalhadores e orientou outros perseguidos políticos sobre questões de anistia e denúncias.

Na profissão, atuou com Pádua Barroso diversas vezes, a quem considera um exemplo. “Advogar era uma pressão perigosa. Ele foi importante além da Ditadura, em processos posteriores, nos quais serviu de testemunha. Ele tinha informações fundamentais. Sempre que posso, presto homenagens a ele”, afirma.

O defensor Pádua Barroso se aposentou como Procurador Federal (AGU) em 1992. Após a ditadura, contribuiu em processos como o de Pedro Jerônimo, comprovando que ele não havia se suicidado em sua cela, ao contrário do apontado pelo regime.

Também foi um dos responsáveis por apresentar provas contra o diretor-geral da Polícia Federal de Fernando Henrique Cardoso, João Batista Campelo. Ele aparecia nas listas de torturadores da ditadura militar, mas só seria afastado caso houvesse documentos concretos de seus crimes no regime. Estes foram apresentados: estavam no escritório de Pádua, que guardava tudo de seus clientes, sendo um deles o ex-padre José Antônio Monteiro, preso e torturado por Campelo.

O advogado morreu em 3 de julho de 2016, aos 87 anos de idade, em decorrência de um câncer de pulmão descoberto em setembro de 2015.

Crédito: Arquivo Pessoal

“Eu devo minha vida à Wanda Sidou”

“Se eu estou vivo hoje, devo a esta mulher”, disse José Honório da Silva, ex-preso político, ao se referir à Wanda Rita Othon Sidou.

Nascida em 22 de maio de 1921, a advogada graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e cursou História na Universidade Estadual do Ceará (Uece). Em 1946, ela concorreu a deputada federal pelo PCB.

Em livro escrito pelo irmão, Ari Othon Sidou, é dito que a defensora “nunca perdeu prazo judicial e nunca esteve ausente de uma audiência marcada”. Na OAB, integrou o Conselho Estadual em três mandatos consecutivos, além de ter ocupado o cargo de 1ª secretária na ordem cearense.

Em depoimento sobre ela, concedido ao O POVO, José Honório fala de quando foi preso. Apesar de ter ocorrido há mais de 50 anos, ele narra com detalhes, com datas e nomes completos daqueles que o condenaram, o perseguiram e também dos que o soltaram.

Assim como no caso de Benedito Bezerril, defendido por Pádua Barroso, Honório foi detido em duas ocasiões. A primeira ocorreu no início de 1970, no Cariri, sob acusações de que ele lecionava pelo método de alfabetização Paulo Freire, em adultos. Isso, segundo o regime, se enquadrava na Lei de Segurança Nacional. Honório foi levado à Fortaleza onde sofreu torturas por um mês inteiro, sem qualquer comunicação com o mundo exterior.

Uma visita só ocorreu pela advogada Wanda Sidou, que conseguiu soltá-lo. “Combinamos uma defesa que chegando no dia do julgamento o próprio promotor que era o Crispim, na Auditoria Militar, ele iniciou a fala dele pedindo absolvição porque não tinha nenhuma prova. Eu não tinha confessado absolutamente nada, tinha negado sempre todas as perguntas. Consegui sair”, conta.

Após a soltura, ele conversou com Wanda, que orientou-o a ser mais cuidadoso, já que uma segunda apreensão levaria a uma “tortura pesada”. A resposta de Honório foi: “Ficar preso por abrir a boca e dizer alguma coisa, jamais. Se a senhora me procurar onde eu estiver preso, eu aguento o tempo que for”.

Crédito: Arquivo Pessoal

Um ano após, ocorreu a segunda prisão. O homem conta que passou por vários aparelhos de repressão de Fortaleza, todo dia mudando de local. Assim, Wanda o procurava, mas não conseguia achá-lo. No total foram 39 dias de procura, os quais Honório passou sofrendo queimaduras, lesões no corpo, extração de dentes e dentre outras formas de torturas.

“Após um mês com todo esse sofrimento, eu estava com a moral abalada. Estava pensando: ‘Cadê a dra. Wanda?’. Ela estava me procurando em todos os aparelhos de repressão, mas sempre diziam que eu não estava lá. E, na verdade, não estava, porque sempre havia acabado de sair”, diz Silva.

O fim disso ocorreu quando Wanda consultou o auditor Ângelo Rattacaso e explicou o caso de Honório, narrando sequestro e pedindo encaminhamentos. O juiz expediu um documento de busca que, segundo o cliente de Wanda, foi “esfregado na cara” no delegado Laudelino Coelho, diretor do DPF/Ceará.

Honório foi solto, mas seguiu perseguido pelos militares de Fortaleza. Nem chegou a pisar em casa. No dia seguinte, teve sua residência invadida pelos policiais, que portavam uma ordem, segundo ele, não mais de prisão, de morte. “Mas eu já estava a caminho do Rio de Janeiro e essa minha vida que eu levo aqui eu devo à Wanda Sidou, a heroína que enfrentou a ditadura militar”, diz o homem, hoje empresário.

Sidou faleceu em agosto de 1993 e tem seu nome atrelado, para a posteridade, à luta por anistia.

Comissão de Anistia Wanda Sidou

A Comissão Especial de Anistia Wanda Sidou (Ceaws) é vinculada à Secretaria dos Direitos Humanos. Criada em 2002, ela atua com a função de analisar e julgar os casos de denúncias de perseguições políticas em território cearense, no período de 1961 a 1979.

O grupo visa acolher e avaliar a procedência dos pedidos de indenização das pessoas detidas neste período, no qual alegam terem sofrido danos físicos e psicológicos, sob a responsabilidade de órgãos do Estado do Ceará.

Pedidos de análise e julgamento de casos, além de solicitações de consultas de documentos históricos podem ser enviados para o e-mail: [email protected]

Clique aqui e leia a matéria publicada no site do Jornal O Povo