O “Confronto das Ideias”, publicado no jornal O Povo na última sexta-feira (15), apresentou pontos divergentes quanto à produção de biografias. O vice-presidente da OAB-CE, Ricardo Bacelar, se posicionou contrário ao argumento sobre a defesa da preservação da intimidade para o controle de produção de biografias.

A defesa da preservação da intimidade é um argumento válido para o controle de produção de biografias?

NÃO – Cumpre destacar, inicialmente, que esta não é uma posição oficial da OAB, instituição que represento. Retrata meu pensamento. O tema das biografias é polêmico e envolve sopesamento de preceitos constitucionais fundamentais – a liberdade de expressão (CF, art. 5º, IV e IX), o direito à informação (CF, art. 5º, XIV) e o direito à intimidade (CF, art. 5º, X). Nessa esteira, emerge a discussão sobre a constitucionalidade dos arts. 20 e 21 do Código Civil. Na ordem constitucional é comum o conflito de direitos fundamentais. As inúmeras possibilidades albergadas pela estrutura normativa não poderiam ser previamente estipuladas com contornos precisos, tendo em vista a complexidade humana. Em casos de princípios conflitantes existem as técnicas científico-jurídicas da proporcionalidade, da ponderação e dos freios e contrapesos utilizadas pelo STF, foro do debate. Na hipótese, acredito que o critério objetivo do interesse público do fato a ser divulgado na biografia faz a balança da intimidade e da liberdade de expressão mudar de eixo. Quando um fato, um documento, uma imagem revestem-se de importância histórica, política, cultural, de benefício coletivo e geral, os reflexos de sua publicização, no campo do direito à intimidade, são minimizados ante ao sobrepeso do interesse público. A informação relevante é fator de construção da memória, da história, do exercício do jornalismo, da opinião, da crítica e da livre produção de obras literárias, artísticas e científicas. A tese ganha musculatura quando os protagonistas são pessoas públicas. Após recente redemocratização do País, causa espécie haver, ainda, prescrição de prévia autorização da expressão e da criação, mesmo que se trate de exposição da intimidade alheia. Há, no ordenamento brasileiro, normas nas áreas penal, civil e disciplinar para coibir abusos, injúria, calúnia ou difamação, bem como a exibição gratuita, desrespeitosa e despropositada da vida privada. A biografia é uma forma de interpretação da realidade e é importante fator de geração de conhecimento.

Ricardo Bacelar
Advogado e vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Ceará (OAB-CE)

SIM – Parte da imprensa brasileira se alimenta de polêmicas cotidianas. Desde aquelas que envolvem os bastidores da política, como, por exemplo, casos de corrupção em que os agentes do poder fazem uso particular do bem público, até as recorrentes e rumorosas separações de casais famosos, nas quais celebridades veem sua privacidade invadida pela “bisbilhotice coletiva”. O que as duas situações têm em comum? A discussão sociológica a respeito da necessidade de estabelecermos uma fronteira entre o público e o privado. Sou a favor da liberdade de expressão, da liberdade de opinião e da liberdade de imprensa. Mas é evidente que deve haver bom senso quanto à decisão de publicar ou não biografias que tragam conteúdo difamatório ou com a intenção exclusiva de expor a intimidade do biografado. Afinal, o que é de interesse “do público” nem sempre é de “interesse público”. Na busca pelo furo jornalístico ou pela notícia bombástica, o jornal britânico News of the World espionava, por meio de grampos telefônicos, cidadãos comuns e celebridades do show bizz. Aqui no Brasil já se sabe que o “assassinato de reputação” (como costuma dizer o jornalista Luis Nassif) promovido por uma revista de circulação nacional era motivado apenas por interesses comerciais e eleitorais. Entretanto, deve-se ter o cuidado necessário para que a defesa do direito à privacidade não motive atitudes autoritárias, como nos tempos da ditadura militar, ou a recorrente judicialização das relações sociais, em que as contendas são resolvidas nos tribunais. Creio que a construção da democracia no Brasil passa não só pela criação de instrumentos legais que regulem o direito à intimidade, mas, sobretudo, por um novo marco ético/social que estabeleça parâmetros legítimos que preservem a intimidade e a individualidade. Como afirma o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, devemos “lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem; lutar pela diferença sempre que a igualdade nos descaracterize”.

Cícero Robson Pereira
Sociólogo, professor e servidor público da Assembleia Legislativa