O debate que ora se trava na imprensa em torno da chamada PEC dos recursos revela, em geral, grave equívoco: o de que os advogados sejam os vilões da morosidade da justiça. Dáse a falsa impressão de que esses profissionais, pelo vezo de esgotar os recursos previstos em lei, conspiram contra a marcha regular dos processos, adiando indefinidamente o trânsito em julgado das decisões e dificultando a efetividade da prestação jurisdicional.

 

Há um desvio de foco nessa visão do tema, que precisa ser corrigido. Em primeiro lugar, os advogados não inventam recursos: usam os que as leis lhes facultam, e assim procedem no cumprimento do dever profissional de dar ao cliente a melhor assistência jurídica.

 

Ademais, as causas que explicam o abarrotamento de processos nas várias instâncias judiciais são de outra ordem: prendem-se, fundamentalmente, à estrutura atual do Judiciário, despreparada para atender ao crescimento vertiginoso da litigiosidade.

 

O aumento do número de juízes em muitos órgãos do Judiciário faz-se necessário, especialmente no Superior Tribunal de Justiça, cuja composição adstrita aos 33 Ministros que o integram, desde a sua criação, já não se mostra compatível com o volume crescente de recursos que lhe cabe julgar.

 

Quanto ao Supremo Tribunal Federal, é preciso considerar que a pletora de recursos extraordinários com que se defronta resulta, sobretudo, da circunstância de que a matéria constitucional que os enseja ampliou-se por demais com a Constituição de 1988, dado o caráter analítico e regulamentar dessa Carta.

 

O instituto da repercussão geral , int roduzido pel a Emenda Constitucional n. 45/2004, na esteira da antiga arguição de relevância da questão federal , não representou a solução adequada.

 

Melhor seria, diante da extensão dasmatérias constitucionais que podem motivar a interposição do recurso extraordinário, que se arrolassem no texto da Constituição aquelas que comportariam o apelo ao STF, à semelhança do que faz a lei fundamental com relação aos princípios constitucionais sensíveis, cuja violação dá lugar à representação interventiva. Além disso, a competência originária do STF pode ser reduzida, no empenho de tornar aquele tribunal, realmente, uma Corte Constitucional.

 

A PEC dos recursos não é, na verdade, uma solução. É mera tentativa de contornar problema para o qual não se encontrou melhor solução… Como se, diante da impossibilidade de o STF e o STJ darem conta do grande número de recursos que chegam àquelas Cortes, se resolvesse, de forma simplista, afastar a possibilidade de interpor tais recursos. Ou diferir no tempo a oportunidade de utilizá-los, na expectativa de que nessas condições as partes acabem desistindo de fazê-lo.

 

Aliás, chega a ser extravagante a forma imaginada para admitir o uso desses recursos, sem obstar o trânsito em julgado das decisões por eles impugnadas. Recurso é, com efeito, meio de impugnar decisão judicial ainda não transitada em julgado. Dizer que a admissibilidade dos recursos extraordinário e especial não obsta o trânsito em julgado da decisão que os comporte representa uma contradictio in adjecto. Ou bem cabe o recurso porque a decisão não transitou em julgado, ou bem se considera inadmissível o recurso porque a decisão já transitou em julgado.

 

Por outro lado, transformar os referidos recursos em ações rescisórias especiais é ladear a questão para, no máximo, permitir o reexame da matéria constitucional, quando a violação dos preceitos maiores, contidos na Carta Magna, já se consumou, muitas vezes de forma irreversível.

 

Releva notar que a PEC em comento, mirando os recursos, acaba atingindo o cerne do papel reservado ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça no contexto do Judiciário brasileiro. Esses tribunais são, com efeito, tribunais da
federação. A competência que exercem é estabelecida em função do sistema de dualidade de justiça, adotado por força da forma federativa do Estado nacional e que implica a existência de duas órbitas de órgãos judiciários – os federais e os estaduais.

 

Cabe, por isso, ao STF e ao STJ a missão de preservar a uniformidade, em tese, na aplicação da Constituição e do direito federal. A malsinada PEC dos recursos atenta contra esse papel histórico do Supremo estendido, em parte, pela Constituição vigente ao STJ. Ambas as Cortes deixarão de exercê-lo em toda a plenitude, à medida que assim se fecharem, drasticamente, as vias de acesso à sua jurisdição.

 

Paulo Roberto de Gouvêa Medina – Membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros, professor Emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora e Conselheiro Federal da OAB-MG.